23 de nov. de 2009

continuação de um diálogo recorrente - parte II


Warat: sociedades de desaparecimento -
O horror continua expandindo-se e submetendo-se a redes de poderes sociais. Foucault denunciou e nos espantou descrevendo as sociedades disciplinares. Nessas sociedades se fazia presente a biopolítica, ou seja, a disciplina por parte do Estado, dos corpos adestrados. Porém corpos que existiam e era preciso formatá-los conforme o que o Estado queria fazer deles. Depois veio a sociedade de consumo massivo, depois a sociedade do espetáculo. E agora estamos, desde alguns anos instalados em sociedades com corpos seqüestrados, com corpos que desapareceram... E ninguém justifica tais desaparecimentos. Corpos tornados invisíveis. Estados que já não se interessam em controlar as pessoas. Querem muito mais que o controle do outro. Querem que o outro desapareça. O corpo do outro já não importa nada. Se for esta a situação, não existe educação, não existe política, não existem instituições, só a dor de não ser. Se vivemos em sociedades de desaparecidos, já não mais podemos falar da alteridade, de direitos humanos, de cidadania. Todas as palavras têm que se transformar em adjetivos de um corpo. Porém os corpos não existem mais e os adjetivos tampouco. Se os cidadãos desapareceram, se não existe a cidadania, qual é o direito aplicável a um desaparecido? Os desaparecidos não podem praticar a cidadania e isto é bom para o Estado. Se meu objetivo é exercer o poder como uma maquina de fabricação de desaparecidos, não tenho porque ocupar-me deles, nem de garantir-lhes a democracia, nem a justiça, nem usar os estabelecimentos onde se fabricam os desaparecidos como lugares de reabilitação. Os desaparecidos não são reabilitáveis. O horror expandido como rizoma marca a inutilidade de todas as fantasias jurídicas. Os desaparecidos se convertem em fantasmas e os fantasmas não precisam de fantasias.
Albano:
O Estado moderno estabeleceu delimitações territoriais à diferença das ocupações das comunidades humanas em épocas anteriores à modernidade. Tais ocupações eram atravessadas por movimentos de territorializações e desterritorializações contínuas que desafiavam a rigidez das fronteiras modernas. A história nos relata a epopéia de povos e de desbravadores que atravessavam os continentes na busca do novo, do desconhecido; e desse nomadismo surgiam os relatos, as narrativas para aqueles que viviam sedentariamente. Tais relatos épicos inauguravam um tipo de discurso pedagógico que produzia um imaginário rico e criativo da saga da humanidade em sua peregrinação planetária. Assim educavam-se as comunidades, conhecendo novas culturas, novos costumes e hábitos. A educação servia para fortalecer a alma, para oferecer sentido às existências. As epopéias misturavam-se com as mitologias e muitos povos construíram imaginários estruturados com as mesmas raízes conforme nos chegam as pesquisas. Parece-me que uma expansão rizomática acontecia nas formações culturais, quando povos construíam suas identidades próprias muito em função das condições ambientais (clima, topografia, etc.), conservando no entanto os vínculos ancestrais das origens da espécie homo sapiens sapiens.
Os costumes (ethos) das comunidades implicavam na internalização dos mesmos através dos hábitos (ethos hexis) forjados em cada um dos habitantes. Todo este movimento dialético construía uma pedagogia (paedagogia), uma formação discursiva que ensinava a VIDA, a construção da morada (oikós) comunitária (polis) e a compreensão da harmonia do Cosmo (kósmos) e de suas leis imutáveis, pois eternas, para que as mesmas fossem aplicadas nos limites do mundo finito (sublunar) que habitamos. Assim, eram educados os corpos, desvelando-se gradativamente nesta tensão que marca uma espécie que se pensa e que se pergunta, que procura respostas para novas perguntas ad infinitum, pois o eterno enfrentamento do ser finito ante a infinitude do Universo.
Talvez daí a idéia do “eterno retorno” nietzschiano, um retorno aos elementais que compõem o Cosmo e naturalmente, nós mesmos. Tais elementais transmutam-se permanentemente, transformam-se mimeticamente no Caos (cháos) primordial que precede e propicia a geração dos corpos gasosos celestes. Chamamos isto de devir, devenir ou, um eterno retorno que nunca será uma repetição, pois construção permanente da VIDA que a todos gerou, que nos deu origem. Esta é no meu entendimento a base da pedagogia dos antigos, ensinando o movimento e sua complexidade, ensinando a compreensão da tensão natural entre o finito e o infinito que se dão simultaneamente. Motor primeiro dos existenciais humanos, onde não há corpos desaparecidos, mas sim, corpos mutantes num provisório e eterno estado transformacional.
A inscrição da espécie humana sempre dependeu e depende da compreensão da “des-ordem” cósmica traduzida em formações culturais que anunciam e ensinam “leis provisórias” que regem a existência do homo sapiens sapiens em seu constante nomadismo, tanto migratório como no mesmo lugar deslocando-se dos determinismos que tentam paralisar as intensidades vitais que nos regem. O Estado moderno, o capitalismo, assim como os institutos por eles desenvolvidos na modernidade (escolas, presídios, hospitais) produziram sistemas de controle e domínio que pretendem disciplinar a vida, manifestos em seus projetos educacionais, jurídicos, políticos, de produção de bens e de consumo, verdadeiras máquinas produtoras de subjetividades em série, linhas de produção de sentido ao não-sentido do Caos primordial, que não pode ser submetido a regramentos definitivos, senão a princípios e leis provisórios que se manifestariam através de uma pedagogia do devir, da VIDA.

20 de nov. de 2009

Educação: um tema recorrente; mais um diálogo entre...


Educação: um tema recorrente; mais um diálogo entre...


Cara de paisaje, cuerpos desaparecidos. Todos disciplinados”. Com este título, Warat escreveu o texto abaixo (com tradução minha), que recepcionei como um reinício de nossos diálogos momentaneamente interrompidos. Está publicado na página de seu blog – Casa Warat UNISUP - do dia 19 de novembro de 2009. Pretendo que o mesmo re-inaugure uma conversação alegre e descontraída, visto que o tema é um verdadeiro “ninho de vespas” de onde “ferroadas” podem vir de todos os lados. Digo isto porque nós que habita(va)mos o mundo acadêmico, sabemos que sob a égide da pedagogia abrigam-se os mais diversos e contraditórios discursos, típicos da Torre de Babel que é o sistema educacional instituído e oficial.
Portanto, este é o primeiro movimento “alegro ma non tropo”, apresentado como um diálogo entre dois narradores.

- Warat:
Albano, quero te contar algumas coisas que por suposto já sabes.Estou em um festival de cinema e Direito, onde travou-se uma rica discussão sobre as coisas que temos discutido diariamente: o fim do modelo educativo racional e a necessidade de discutir que tipo de educação queremos para amanhã. Outro dia, quando eu e membros da Casa Warat, fomos ver se poderíamos sonhar juntos com as Mães da Praça de Maio. Gregorio o coordenador geral da Mães, um velho amigo das sempre renovadas lutas me disse algo que provocou uma forte comoção em minha sensibilidade racional (equivalente a que Marta Gama provocou quando me disse que a faculdade de direito lhe havia roubado o corpo). Gregorio me disse que não só os militares provocaram o desaparecimento dos corpos. (para ele) A educação, inclusive na democracia provoca o desaparecimento de todos os corpos educados. O conhecimento, a educação reinante são semiocídios, que completam os momentos de extermínio concreto dos regimes totalitários, tal como os do processo Videliano and company. Somos todos, devires de subjetividades em corpos desaparecidos.
Tudo começou quando começamos a esquecer-nos que somos animais racionais e nos reivindicamos só como racionais. Este foi o primeiro ato de desaparecimento do corpo, daí começamos a ser desaparecidos até chegar ao ponto de vivermos em sociedade de desaparecidos. E a coisa continua com a disciplina, com este maldito modelo de educação, a partir de fragmentos disciplinares apoiados numa erudição, que, como toda erudição, é uma forma da ignorância, a ignorância erudita, esta que não sabe fazer nada com a informação, aterrorizada com tanto brilho. Por mais que ilustremos a informação, ela não se torna inteligente. A inteligência não brilha, apenas nos transforma, silentemente. A transformação de nosso devir subjetivo, seja individual ou coletivo, tem de ser silente. O escândalo revolucionário não é criativo e não modifica nada. O escândalo contém um forte componente autoritário. Temos que dizer basta ao saber por disciplinas. Barthes tinha razão. Temos que substituir as disciplinas por seminários. Estes últimos têm que ser dialógicos, carnavalizados, dionisíacos, com a ordem mais desordenada e aleatória possível. Por isso Barthes organizava seus seminários na Escola de França alfabeticamente.
- Albano:
Vou colocar como iluminura deste diálogo, que convêm salientar não está amparado no modelo do diálogo de surdos típico dos acadêmicos, a figura do Chapeleiro Maluco, visto que as iluminuras podem ilustrar melhor os caminhos que pretendo percorrer neste breve relato. O Chapeleiro é um personagem onírico que acontece nos sonhos de Alice, sonhada por sua vez por Lewis Carol. A partir destes lugares-personagens posso pensar a des-ordem, o Caos, a ausência de um sistema de ordenamentos que estabelecem “sentido” para os habitantes do mundo sublunar, marcado pelo tempo histórico. Mas, alguns destes habitantes percebem fissuras nestas densidades espaço-temporais, nestas densidades institucionais produzidas para ancorar os animais pensantes que somos. Tais fissuras, tais brechas negam o totalitarismo das práticas discursivas absolutas; e assim, produzem outras densidades, sutis e plenas de novos sentidos, que por sua vez libertam as subjetividades aprisionadas nos “corpos desaparecidos” a quem te referes querido amigo.
A modernidade produziu estrategicamente instituições, instituídas de tal forma como se existissem desde sempre. “Inventou” garantias para os humanos e suas comunidades, fundadas nos princípios da ordem e do progresso; do desenvolvimento tecnológico e do consumo de bens renováveis. Assim disciplinou os corpos e as vontades, articulados tal marionetes para que respondessem tão somente aos estímulos condicionadores. Nossos corpos estão ausentes de nós mesmos porque de nós foram alienados pelos filtros de sistemas educacionais produzidos para a geração do esquecimento, esquecimento de nossa ancestralidade cósmica, filha do Caos, ou seja, da constante densidade do instituinte que nunca se faz instituído, pois devir permanente.
O instituído é o Leviatã que a todos pretende submeter através dos signos postos como significante únicos produtores das máquinas racionais educativas. A nós cabe o permanente deslocamento, o estado do nomadismo, errantes de muitos lugares, errantes em um mesmo lugar, onde o instituinte não nos alcance, ali onde o Chapeleiro Maluco se movimenta, no Caos.
Des-velar, retirar os véus que encobrem os lugares eruditos das falas dos mortos, é nosso modo de ser, desiderato dos pedagogos comprometidos com a emancipação dos seres oníricos e amorosos que somos, pois desejantes em nossa infinita finitude.

23 de out. de 2009

sonhar, tão somente sonhar...


Hoje, acordei com fragmentos dos meus sonhos noturnos vagando entre os neurônios. "vamos então interpretar tais sonhos-fragmentos, visto que eles são pistas do meu inconsciente", poderia pensar. Mas, por outro lado, lembrei-me de Benjamin que afirmava que antes de fazermos as abluções (purificar-se com a água, lavar-se antes das orações), devemos deixar que a memória dos sonhos acontecidos produza imagens, simplesmente, sem interpretações possíveis, sem buscar significados ou sentidos. Deixar apenas que a memória enquanto lembrança permita-se seu hiato, antes de transformar-se em memória enquanto esquecimento. Assim eu leio a recomendação benjaminiana: escutar os sonhos, os vislumbrar. Não interpelá-los, não colocá-los diante do tribunal inquisitório da razão que a tudo "explica", que a tudo devora e que depois joga fora como excremento.
Os sonhos, - já afirmava em textos anteriores - ocupam grandes momentos de nossa vida sublunar, nos fazem trilhar caminhos do incompreensível, do inapreensível, do inenarrável. Os sonhos são nossas verdadeiras viagens míticas através de dimensões que nosso corpo físico nunca atravessou, mas que nosso corpo astral atravessa todos os dias de nossas vidas, recolhendo fragmentos, resíduos mais consistentes que insistem em permanecer colados a nós. E assim recolhidos são atirados ao léu, ao acaso das outras dimensões que habitamos oniricamente.Dos sonhos, devemos guardar as experiências vividas no universo de Morpheus, que só tem sentido naquele não lugar, ou seja, onde os sentidos possíveis da memória onírica só serão encontráveis nele mesmo enquanto existenciais, não enquanto fontes de informações para a vida não onírica, a vida consciente como diriam alguns.
Creio que interpretar os sonhos seja como querer interpretar as vivências amorosas, pois no meu entendimento, tais vivências são fantasias, ficções que criamos e que ocupam lugares singulares, dimensões existenciais necessários a nós, humanos. Tais existenciais ligados rizomaticamente a outros existenciais, constituem-se em trajetórias únicas, para cada um de nós, dando forma e sentido à passagem humana neste espaço-tempo sublunar denominado Vida.
Tanto criticamos os antolhos positivistas das ciências que esquecemos dos antolhos que utilizamos para falar dos nossos existenciais, notadamente do tratamento que damos aos vínculos amorosos. Dissecamos os cadáveres amorosos com a mesma volúpia dos anatomistas. Queremos explicar como funcionam os órgãos (saudade, ciúme, carinho, afetos, desejos),como interagem uns com os outros, para assim definirmos suas patologias, seus males, suas fragilidades. Queremos mostrar o sofrimento, a perda irreparável, a dor lancinante que se apodera de nós quando amamos, quando perdemos o outro amoroso. Assim desdobramos a vida em pequenos dramas-comédias, para desta forma esquecermos a tragédia da solidão que nos confina desde sempre neste pequeno planeta que vaga no Cosmos.
Esquecemos que a Vida nos legou os sonhos, o mundo sutil das imagens não elaboradas racionalmente, o mundo onde as emoções conduzem nossas mentes, onde nossas extensões físicas (nossos corpos anatômicos) não existem. Apenas devaneios ausentes do mundo lógico e racional. É provável que ali seja a morada do vinculo amoroso, que deve ser tomado como um existencial indefinível, tal como devem ser os sonhos...

21 de out. de 2009

Maradona redivivo


Réquiens e réquiens


Quantas vezes faremos réquiens, quantas vezes faremos parte do coro das carpideiras que desde os gregos até hoje nos sertões brasilis cantam as ladainhas da despedida para os que se vão ad aeternum?
Maradona não quer morrer, visto que por intuição os heróis tem uma missão a cumprir, a missão de redimir sua humanidade da vulgaridade, da servidão voluntária, do capachismo. Não quer morrer porque se apercebeu do panteão (que viria a servir como seu palco cênico político) onde o colocaram, ao lado de outros deuses heróicos, visto que Maradona soergueu a dignidade argentina através de sua arte admirada pelo mundo que vai além da Argentina. Soergueu a utopia para um povo pisoteado pelas botas da ditadura, cujas vozes só eram escutadas publicamente na Plaza de Mayo por las madres que lutavam e lutam contra o esquecimento, lugar comum dos covardes, daqueles que desconhecem a dignidade necessária a uma espécie. Maradona perfilou-se ao lado delas, levou suas imagens para o resto do mundo, poeticamente e politicamente. Ele, o suburbano, o que nasceu o útero do gueto periférico de uma Buenos Aires de ares europeizados, de bairros que imitam despudoradamente a arquitetura das grandes cidades européias. Do porteño que exporta a mais delicada de suas expressões d’alma, como um artigo a ser consumido por turistas acidentais ou incidentais. Falo do Tango, falo da MIlonga, falo da poética que atravessa os corpos daqueles que amam, tragicamente amam.
Maradona me lembra um personagem criado pelo Chico Buarque na sua Ópera do Malandro. Falo da Geni e da saga para ela criada pelo autor. A que veio do cais do porto, do gueto e se vê alçada à condição de redentora da cidade. Uma vez heroína, é remetida de volta para o convívio com os outros ratos, os que não usam Armani e que não são embaixadores de nada . Maldita Geni, maldito Maradona, seres que saem do lixo e que expõem as vergonhas dos opressores, nudezas nada sensuais, pornográficas e subservientes. Eles produzem sem o saber a ira dos carrascos neo-nazistas que freqüentam os Cafés aristocráticos, o teatro Colon, os restaurantes sofisticados de Porto Madero e que passeiam com seus cachorros pela Ricoleta. São eles que com suas vozes silentes engrossam o outro coral, normalmente orquestrado pela mídia, pelo sistema de comunicações, que se retroalimentam autofagicamente em suas perversões, em suas inferioridades. Que produzem mitos para destruí-los e comê-los aos nacos, pensando que assim estão matando e comendo o Pai.
Warat, creio que continuaremos a participar dos réquiens, com nossos cânticos, com nossas vozes quase sempre emudecidas pelo modo ensurdecedor que a cidade como um todo clama:
“Joga pedra na Geni/ joga bosta na Geni/ ela é feita para apanhar/ ela é boa de cuspir...” Malditas Genis, malditos Maradonas, malditas madres de La Plaza de Mayo, malditos nós que desconhecemos a vassalidão e por isto condenados a cumprir a pena de Sísifo, ou quem sabe de Antígona.
Portanto, Requiem aeternam dona eis. O véu do silêncio e do esquecimento hoje começa a revestir o corpo do herói, morto em vida para o gáudio dos covardes que passeiam despudoramente pelas calles da vida.

19 de out. de 2009

CARNAVAIS PASSADOS


MEMÓRIAS
Sobre os bastidores do texto

Esta narrativa foi escrita (1992) ao término da criação de um texto elaborado por mim e por Luis Alberto Warat atendendo ao um convite para participarmos de uma coletânea. No entanto, a mesma, sob o título de “Filosofia do Direito: uma introdução crítica”, só foi publicada em 1996. Constitui-se em um pequeno relato de uma experiência única na produção de algo escrito a quatro mãos entre amigos.
Um texto despretensioso produzido ludicamente em torno de conversas agradáveis e algumas indicações bibliográficas que vinham às nossas memórias intempestivamente. Estávamos em São Paulo, numa época em que fazia o doutorado em Filosofia na USP, e o Warat me visitava durante o carnaval daquele ano – ele residia em Florianópolis e lecionava na UFSC. Como é de hábito, sua compulsão em escrever resultou no agradável desiderato de produzirmos algo para a Editora que nos havia sugerido algum tempo atrás: a entrega de um texto sobre filosofia e direito.

A narrativa -
A sala de estudos volta à sua quietude cotidiana. Nas paredes, as estantes permanecem como fieis pilares de sustentação dos livros e da sabedoria: o carpete, agora limpo das cinzas de cigarros e de pedaços picotados de papel, nem mais lembra um campo de batalha – quem sabe de um sambódromo – onde os livros e os papéis antes empilhados desordenadamente sobre a mesa de trabalho desapareceram, uns de volta aos seus lugares e outros repousam no cesto de lixo. A qualidade do ar (segundo parâmetros oficiais da CETESB) da sala volta às suas condições normais, ou seja, fumaça de cigarros acesos em períodos regulares. Os copos sujos de restos de café, de cerveja, de vinho, assim como a tacinha do Underberg, já foram recolhidos para a copa; os ruídos das vozes dos interlocutores já não é mais audível. Assim, certa mesmice se reinstala.
Iniciamos nosso trabalho na sexta feira da semana pré-carnavalesca e o encerramos na quarta-feira de cinzas. Nosso objetivo manifesto: escrever um livro sobre filosofia do direito; nosso objetivo oculto: o de sempre, fazermos um balanço de nossas vidas, para com isto reafirmarmos nossa condição melancólica diante do mundo por nós vivido. Dificil, senão impossível desimpregnar o tecido existencial tão fortemente costurado em nossas individualidades e que traz consigo as tonalidades, as tessituras e estilos típicos dos adeptos do bloco da melancolia (para não esquecermos a ressaca carnavalesca).
Dia a dia nos enfrentamos como bons amigos que somos, na arena dos saberes instituídos e consagrados. Entre consultas bibliográficas e consultas autobiográficas despejávamos no micro uma parafernália de informações. E, tal duas rendeiras, tecíamos o tecido das significações. As idéias que cada um trazia em suas mochilas existenciais, eram atiradas para cima e as que repousassem mansamente na telinha do Solution 16 logo transformavam-se em texto. Quantos mestres-mortos foram solicitados a depor naquele tribunal de saborosos saberes (desculpem a tautologia) desprovido de veredictos. Quantos fantasmas nossos se intrometeram para tão somente cumprirem a função dos fantasmas, ou seja, a de não no deixar dormir embalados pelas silentes vozes dos mestres-mortos da sabedoria.
Ao nos propormos a escrever tal livro, assumimos a idéia como algo distante, como algo a ter densidade “depois”. O que nos estimulava, creio, era o projeto “possivel”: enfim, “algum dia” sentaríamos em qualquer lugar e pela primeira vez, a quatro mãos, poríamos em prática algo que já estava inscrito no tempo, isto era suficiente. Quanto ao tema, acredito que nem pensávamos no mesmo. Poderia ser qualquer um, o que nos interessava era que o projeto estava lançado, passava a habitar nosso imaginário. E como costumamos cultivar fantasias isto nos bastava. Jogar para o papel textos encomendados é o nosso desiderato. Enfim, a atividade acadêmica carece de memória, necessita de matéria prima para a existência de seus acervos. Warat, mais que eu, um escritor compulsivo e portanto profissional; seus textos costumam acontecer quase que cotidianamente. Neste risca-rabisca acontecem livros, artigos, conferências e muitos rabiscos atirados nas cestas de papeis. Da “Ciência Jurídica e seus dois maridos” ao “Amor tomado pelo amor”., muita energia libidinal foi gasta, muitos maços de cigarros foram transformados em cinzas e, muitas tirinhas de papel foram atiradas ao chão – para o desespero dos seus hospedeiros eventuais. Eu, o disciplinado aluno, que produz textos para cumprir rituais acadêmicos e, às vezes escrivinhador compulsivo de crônicas do cotidiano, convém salientar, escritas normalmente como se fossem correspondências para amigos, que raramente as recebem! Com estas específicas biografias de escribas, aceitamos o projeto comum, o “projeto”, apenas.
Mas, eis que acontece o período dedicado ao reinado de Momo, e como o carnaval não passa desapercebidamente, nem para os foliões aposentados, como é o meu caso, nem para aquele que dele se aposentaram sem ao menos tê-lo vivido. Como é o caso do porteño Warat, estava dada a ocasião para a concretização do “projeto”; o evanescente ia ter o seu momento de densidade. Sob a benção dos foliões da ativa – que nem sabem de nossas existências – aceitamos o início da nossa folia: a produção de um texto encomendado, datado e com todos os salameleques que requer sua feitura. Enfim, fantasiado de livro. E, tal como qualquer prévia carnavalesca, foi anunciado antes do carnaval oficial: sexta-feira, um dia antes da posse de Momo. Também, como bom texto de carnaval, chegou ao seu termo numa quarta-feira de cinzas, com direito a ressaca, Sonrisal, Alka-Seltzer e gelo na testa.
Esta é uma parte da estória de um samba enredo a ser cantado em algumas passarelas da academia nos próximos carnavais.

7 de out. de 2009


”Requiem aeternam dona eis”[i]: o repouso de Macabéa

Albano Marcos Bastos Pêpe

“... a razão não é a essência do universo, nem a essência de Deus. Ao contrário e de forma bem questionável, a razão parece ser a essência do pensamento humano, pior ainda, a essência de apenas uma tendência do pensamento humano. A razão é a essência de um certo domínio do pensamento humano”
J. M. Coetzee[1]

Pensar, não como exercício teórico-científico, mas me deixando levar pelo texto que passo a tecer tal fiandeira, traçando os caminhos da narrativa, que Walter Benjamin[2] expõe como “a experiência que passa de pessoa a pessoa”. Tendo como fonte os relatos que escutei dos personagens de Clarice, da fala poética de Álvaro de Campos e de minhas experiências, abandonando a mera informação expositiva em nome de uma ação livre que busca a autonomia de um relato muito mais amplo que uma mera e convencional comunicação. Para tanto, tenho como fio condutor um texto, um relato literário, despojado de qualquer pretensão cientificista. Eis o desiderato que proponho frente uma comunidade que debate-se desde sempre no interior da discussão acadêmica atual e que fica sem saber o que fazer com paradigmas considerados por muitos especialistas como mortos e devidamente enterrados. Nada mais convencional, já que vivemos o pós isto, o pós aquilo e tantas outras firulas que retroalimentam o modismo discursivo dos convescotes acadêmicos.
O pensador francês Bruno Latour[3], em ensaio denominado “Jamais fomos modernos”, faz-me recordar um legado dos modernos que apresenta o conhecimento concebido a partir do poder científico encarregado de representar as coisas e do poder político encarregado de representar os sujeitos. Minha narrativa não se pretende representação, antes de tudo apresentação e, portanto me sinto à vontade para no uso do lógos, da Palavra, e tendo acesso à linguagem, assim como todos os presentes, relatar esta estória sem o uso de categorias que servem à representação científica tipo verdadeiro-falso ou racional-irracional e sem a pretensão de que esta fala se manifeste como transgressora ou marginal aos meus interlocutores. A quero como fruição, como devir, como condenação que nossa espécie trás inscrita em sua singularidade afirmada como a do homo sapiens sapiens.
Dotado de linguagem, este ser-aí (dasein) - que todos somos -, produz memória, lembranças de eventos passados, de eventos vividos no presente (já passado) e de eventos a ser vividos no futuro como jogos de projeções frente sua finitude. Diria de passagem, que esta narrativa prende-se fundamentalmente nesta típica marca da condição humana: a da produção de memórias que unem indelevelmente a vida e a morte, e que, conseqüentemente busca sentido para a existência, face um pequeno “defeito de fabricação” estabelecido pelo Arquiteto do Universo, que impossibilita a imortalidade deste ser enquanto ente finito.
Assim, a memória inscreve-se nas formações culturais da humanidade enquanto história. Nesta, os eventos produzidos são organizados cronologicamente enquanto presente, passado e futuro. Os saberes são naturais, sagrados, laicos e científicos. O tempo é periodizado enquanto antigo, medieval, moderno e pós qualquer coisa. A vida sofre um processo de ordenação. A Palavra é religiosa, científica, poética, literária ou vulgar. A realidade é fruto de tais partições e a verdade... Bem, a verdade é uma outra questão reivindicada e apropriada vias de regra pelos detentores do “saber, poder, lei”. Quanto ao real, todos nós somos herdeiros do legado platônico e aprendemos desde sempre que a ele não temos acesso, salvo por alguns lapsos de memória, logo relegados pelos habitantes da Caverna. Aprendemos com os doutos que a realidade se constitui de um esforço sobre-humano de nos aproximarmos do real, quem sabe mero factóide, ou seja, um fato, verdadeiro ou não, a nos animar na insana busca de sentido manifesta pela Palavra travestida de científica na academia, de religiosa na igreja, de senso comum na aldeia. Dela retiramos teorias, atos de fé e convicções ditas pessoais e coletivas, uma torre de Babel, como exclama Álvaro de Campos o Poeta, ante tal bagunça:
“ Deuses, forças, almas de ciência ou fé/ Eh! Tanta explicação que nada explica!/ Estou sentado no cais, numa barrica,/ E não compreendo mais do que de pé”.
[4]Álvaro de Campos
No entanto, desprovido de memória segue o Cosmos, infinito, linear, sendo, desde sempre. Nele, nos encontramos sob a égide de um tempo sublunar e nele, os outros seres vivos, que à diferença de nós humanos vivem o tempo cósmico, sem passado, sem presente, sem futuro; apenas o existir e o deixar de existir, desde sempre, para sempre. Neles, a vida e a morte seguem os passos da existência cósmica. Neles, a memória é simplesmente genética, produtora dos instintos que garantem o viver no habitat natural, produzindo mutações evolucionárias que se dão eternamente, pois este parece ser o sentido maior da vida. Nus, desde sempre despidos, pois nunca vestidos (revestidos) de carapaças os outros seres vivos nascem, vivem e morrem, simplesmente.
Mas, este não é o destino de Macabéa, vivente humana que herda o legado do tempo sublunar. Existe para a vida, pensada para a morte, para sua “hora da estrela”.Portanto, viva Macabéa, para que seus sentidos se apropriem da doce despedida do ser que sabe-se ente, vivente, apenas. Viva Macabéa, na certeza de sua incerteza de ser, na sua mediocridade habitual, habitante de um mundo que apenas te obriga a respirar, recolhendo tal Penia as migalhas que mitigam tua fome tão ínfima, tão pobre de desejos e de falta de sentido. Não tens a ciência, não tens a fé, não tens a ideologia e tua esperança nem esperança o é, não tens da Palavra nem a redenção. Estas são palavras que apreendo no escrevinhar que te desnuda, desde sempre vestida. Ao retirar o véu que a oculta, alethéia como diriam os filósofos gregos, Clarice Lispector, por nunca saber-se plenamente nua veste-se Macabéa, e a ti impõe o papel de conduzir o ofertório da despedida. Diante de da tal cerimonial, o Poeta Álvaro faz a celebração:
“Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou./ Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma. /Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade/ Em mim (...)”
Álvaro de Campos
Um conto, uma narrativa, frágil castelo de letras... Num sutil adeus de alguém que escolheu como reduto de sua breve existência, a escrita. Sua forma maior de ser no mundo. Despedida com seu estilo de existência: através de personagens, que, aos fragmentos deixam entrever o ser único que se expõe timidamente.
Como elaborar seu próprio réquiem sem resvalar em lugares comuns e pendulares, que vão do elogio exacerbado à comiseração dos personagens criados, que neste momento emergem para depor ante a finitude de seu criador. Réquiem como ofício da despedida, do abandono, do abandonar-se ao Nada, preenchendo as pequenas lacunas, os incômodos vazios que desde sempre anunciam da finita vida sua totalidade, indo ao encontro de sua plenitude, sem lacunas, sem vazios (sempre pensamos que há espaços a serem preenchidos), enfim, o Caos.Quando a linguagem é nossa condenação e liberdade, a vivemos, como única ancora possível para a existência, para um existir sem sentido, mas que exige sentido, algo como o que justifique não a vida, mas tão somente “a véspera do morrer”.
Clarice escolhe seus personas, ou seja, seus personagens. Aqueles que farão companhia para mergulhar definitivamente na sua morte que se anuncia a partir de Macabéa e daqueles que partilham sua breve vida. Escudada em um heterônomo qualquer, - Rodrigo S.M. -, elabora seu réquiem, na busca de sentido ao sem sentido, desvelando ao mesmo tempo, dialeticamente, o sem sentido do sentido de sua existência singular que se esvai incompreensivelmente. Daí, como ela mesma deixa passar: “A morte é um encontro consigo... O melhor negócio é ainda o seguinte: não morrer, pois morrer é insuficiente, não me completa, eu que tanto preciso”. Já que seus personagens, fragmentários e fragmentados não preenchem as lacunas de um existir que nunca encontra plenitude neles e que logo anunciados desmancham-se no ar... “quem sou, não sei, quem fui, morri-o”, diria Pessoa aos meus ouvidos, nestes entreveros de um mim consigo mesmo. E Álvaro acrescenta:
“Quem me vendeu ao Destino?/Quem me trocou por mim?”
Álvaro de Campos
Busco dialogar com Clarice através deste réquiem, batizado, - assim o recepciono, - como “A hora da estrela”. Eu, em completo desamparo meu tentando despir-me das armas conceituais desde sempre a mim ofertadas, tomando as palavras como bom senso, para uma Comunicação numa comunidade que trata do direito, da psicanálise, da arte e quiçá da filosofia. Tento desnudar-me daquilo que me reveste, veste de novo, do novo e do antigo. Mas tal desnudamento nunca se realiza plenamente, estou sempre vestido pela Palavra, pelo lógos, marca da espécie que me designa. Sou refém pela fala, pela escrita, pelo texto, por todas as metalinguagens que tentam ferir o real, sou criador de mundos, falíveis, finitos, assim vivo as realidades que se dizem reais. Mas, como deixar-me levar pelo suave embalo de “uma crônica de uma morte anunciada” sem transgredir a pureza do texto em sua literalidade. Como sentar-me ao lado da moribunda e simplesmente recepcioná-la na sua breve existência que, diante de mim - também moribundo - se esvai. Eis mais uma pergunta que se me apresenta, cuja resposta possível ela, a pergunta, traz em suas entranhas, tão estranha ao meu corpo que a gesta à espera de um parir morrendo, de um nascer como uma estrela.
Mansamente, apenas sentindo o movimento da natureza que me envolve nesta solidão serrana, abro os sentidos e a morada (oikós) para recebê-la, Macabéa, a ti e àqueles cujas existências dependem da tua existência, nesta rápida saga que nomeamos como vida. Os recebo, enquanto arautos, anunciadores, clarividentes, enquanto desdobramentos da Clarice que se anuncia Rodrigo, pois Macabéa... Como é difícil falar na morte na primeira pessoa do singular.
Macabéa, me remetes a idéia das origens das espécies, mais especificamente à origem da espécie a qual pertencemos, visto sermos o padrão único do homo sapiens sapiens. Em nossa evolução natural, vivemos desprovidos da capacidade de nos orientarmos pelos instintos, tal como as demais espécies, que vivem, simplesmente vivem e morrem, cumprindo assim o ciclo daqueles que nascem neste planeta, em Gaia, sua única e possível morada. Sem adentrarmos em teses cientificas e acadêmicas, a existência e evolução da espécie humana se dá, à diferença das outras espécies a partir da linguagem, do lógos, da necessidade absoluta da produção de sentido para sua existência. Desde as coisas mais elementares, como proteger-se das intempéries naturais, como a busca de alimentos, como a reprodução, com as crias,como a insociável sociabilidade com os demais membros da comunidade, da tribo, do clã, enfim dos anatomicamente iguais.
Assim como os membros das demais espécies se constituíram em grupos da mesma espécie (as matilhas, as manadas, os cardumes) a nossa, também se fez comunitária, tribal, com a sutil diferença de sermos capazes de criar coletivamente memória das experiências humanas vividas, atribuindo às mesmas, sentido temporal: presente, passado e futuro. Assim apreendemos o tempo como algo que está em nós, que nos habita, como um para além face ao tempo natural que acontece, que simplesmente acontece, apenas existenciado pelas demais formas de vida, o tempo cósmico, imprescritível.
Tal assunção de algum modo nos desvincula do tempo cósmico, mas, contraditoriamente a ele nos mantém aprisionado, visto que somos apenas uma espécie dentre outras que habitam physis, a Natureza. Neste processo contraditório está, talvez, uma de nossas grandezas e miséria simultâneamente: descobrimos a finitude, somos mortais em um Universo “que jamais começou” mas que gesta em seu ventre seres mortais e, um único ser que se pensa em sua infinita finitude: o humano. Na quebra deste fino tecido que nos distancia das demais espécies, nos compreendemos como seres para a morte, sendo ela expressão maior do fim, condição de sentido primordial para nos construirmos enquanto seres para a vida; lembra-me Heidegger, uma entre tantas vozes que em mim, teima em não calar . Seres para a vida, seres para a morte, questões que fazem mais uma vez, o Poeta pensar em voz alta:
“(...) nunca propriamente reparei/ Se na verdade sinto o que sinto. Eu/Serei tal qual pareço em mim?/ Serei Tal qual me julgo verdadeiramente?/ Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,/Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.”
Álvaro de Campos
Digo estas coisas Macabéa, pensando numa resposta procurada por Clarice enquanto Rogério, para seu eu, seu “mim”, desdobrado em tantos outros “mins” necessários e que faz este desabafo: “pois não agüento ser apenas mim”. Falo a ti, não para te dar a resposta, pois não a tenho (quem a tem?), mas para ao seu lado procurar o sentido da pergunta. E a pergunta se pergunta pelo sentido da Vida. E é para isto que você existe Macabéa, para conter em teu mirrado corpo nordestino os tentáculos da pergunta de sua criadora e criatura. A existência que lhe foi designada traz consigo o fardo das coisas finitas que pesam dolorosamente e que um dia, sem mais nem menos, finda. Clarice, por amor, projetou em você a criatura que suportaria o peso e a leveza do fim da vida, da sua vida.
A Palavra constituiu-se no útero que te germinou Macabéa. Foi neste lugar fecundo que tua existência explodiu, veio ao mundo intimista de uma “criadora de mundos”, tão somente para cumprir uma missão, delicada, frágil e simples. Apresentando assim a vida, como ela o é, plenamente, ao extinguir-se em sua singularidade como um clarão derradeiro na hora da estrela.
Clarice te anuncia ambiguamente: “Eu não inventei essa moça. Ela forçou dentro de mim sua existência. Ela não era nem de longe débil mental, era a mercê e crente como uma idiota. A moça que pelo menos comida não mendigava, havia toda uma subclasse de gente mais perdida e com fome. Só eu a amo” (grifo meu). És, portanto, a filha pródiga, a quem foi dada, dentre tantos personagens dos mundos de Clarice, o papel da fiandeira, aquela que tece com a Palavra a delicada teia que anuncia o fim, o fim desta mesma Palavra de um ente que vive a eterna finitude de ser. Solidariamente Álvaro acrescenta:
“Há um amargo de boca na minha alma:/É que, no fim das contas/,Não estou pensando em nada, Mas realmente em nada/, Em nada...”
Álvaro de Campos
Parece-me que a eternidade finita da Palavra tem sua duração enquanto ressoa em um outro. Reverbera, ecoa, procura sentido, mas ao mesmo tempo dá sentido à perdição daqueles entes que procuram ser, embora que o sejam, desde sempre. A Palavra que se esgueira pelas esquinas, pelos becos fétidos, pelas vielas do “cais imundo”, pelos paralelepípedos da Rua Acre. Pelos diálogos-monólogos com a rádio Relógio (os locutores invisíveis), com Olímpico (seu namorado?), com seu Raimundo (o chefe), com as quatro Marias (viventes no mesmo quarto), com Glória (a amiga?), com madame Carlota de tantos adjetivos: caída na vida, mulher-dama, cartomante, quem sabe oráculo!
Palavra que toma forma e conteúdo, esboçando mundos paralelos através de tantos personagens, diante da minúscula Macabéa. Criando atmosferas suburbanas que ela dividia com os gordos ratos e tais e quais personagens, logo ela, confessa Clarice: “Maca (que) jamais disse frases, em primeiro lugar por ser de parca palavra”. Mas, a Palavra, em sua gênese a ninguém poupa, nos sufoca, nos vomita e nos faz vomitá-la. E, conforme Álvaro, “A vida... branco ou tinto, é o mesmo: é para vomitar”. Neste furacão voraz onde o sentido muito das vezes perde-se no não-sentido, ecoa um grito de desespero e confissão: “quanto a mim, só sou verdadeiro quando estou sozinho”, dirá Clarice. Como e quando estiver sozinho, sem ser atravessado, violentado pela Palavra, eterna nomeadora de todos os nossos momentos. Como estar sozinho se sou legatário da memória da Palavra, desde sempre, se o legado da espécie implica em dar sentido, sempre, mesmo que seja, ao sempre sem sentido . Eis a existência que, exemplarmente, nos abriga e obriga a sermos “seres para a morte”.
A hora da estrela, o momento de ser verdadeiro, único, insiste a autora: “Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante da glória de cada um e é quando no canto coral se ouvem agudos sibilantes”. Eis o momento em que a Palavra perde sua força e divindade: “eu sou o Verbo”, passa a ser um enunciado pleno de vazios: morto, não mais sou capturado pelas palavras. Não há mais momentos, não há mais presente, nem passado, nem futuro, pois assim reafirmará Clarice: “o dia de hoje, o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas neste momento”.
Não morres sozinha Macabéa, neste fiapo de consciência em que te agarraste e que repetias, como a nos convocar a sermos um tu: ”eu sou, eu sou”, buscando “no próprio profundo e negro âmago de si mesma (...) o abraço da morte”. Pois neste instante, neste átimo de tempo sem tempo, o Poeta se debruça e fala suave e amorosamente à tua alma:
“Estou morto, de tédio também/ eu bato a rir, com a cabeça nos astros/ Como se desse com ela num arco de brincadeira/ Estendido, no carnaval, de um lado ao outro do corredor,/ Eu, assombroso e desumano,/ Indistinto a esfinges claras,/ Vou embrulhar-me em estrelas/E vou usar o Sol como chapéu de coco/ Neste grande carnaval do depois de morrer”.
Álvaro de Campos.
Encontrastes enfim Macabéa, alguém, além de ti mesma criatura e criadora, que te ama infinitamente, neste momento do ser que se ausenta do ente para toda a eternidade.

No silêncio desta noite-madrugada, silêncio que marca a ausência do ruído das vozes humanas, silêncio do coaxar dos sapos, do canto dos grilos, dos latidos dos cachorros que passam, procuro, ao abandono da Palavra pensar a sinfonia desde sempre executada pelos corpos celestes, já inaudíveis para nós seres humanos incapazes de nos ouvirmos enquanto seres naturais.
E, se o “silêncio é tal que nem o pensamento pensa”, como este narrador escutou de Clarice, o corpo de Macabéa ali na sarjeta, colado no capim, abraçada em si mesma, numa carícia derradeira, sentiu-se por inteiro, plena, feliz, única, sentindo pela primeira e última vez sua nudez, a nudez do fim da Palavra... Eis o silêncio, tão agonicamente esperado, por ela, por nós, por cada um de nós... Adeus Macabéia, ou melhor: até breve...
Lá fora, tingidas de amarelo-ouro as folhas dos plátanos soltas, livres navegam pelo cósmico Caos. Levadas pelo vento e, na simples despedida, reverenciam os dias outonais...
[1] J. M. Coetzee. A VIDA DOS ANIMAIS; Tradução de José Rubens Siqueira, Companhia das Letras. São Paulo. 2002.
[2] BENJAMIN, Walter. MAGIA E TÉCNICA, ARTE E POLÍTICA; Tradução de Sergio Paulo Rouanet Editora Brasiliense. São Paulo. 1987.
[3] LATOUR, Pierre. JAMAIS FOMOS MODERNOS; Tradução de Carlos Irineu da Costa, Editora 34. Rio de Janeiro. 1994 (quarta reimpressão, 2008).
[4] Pessoa, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos; obra poética IV, Editora LP&M: Porto Alegre, 2008. Todas as falas de Álvaro de Campos descritas no texto estão contidas nesta obra.
[i] “Dá-lhes o repouso eterno”

5 de out. de 2009


O amor, uma experiência... da linguagem
PARTE IV


Albano Marcos Bastos Pêpe

Tomar o amor na perspectiva de uma experiência da linguagem, como algo em que o homo sapiens sapiens é colocado ao longo de sua evolução por se constituir em voz (phoné) e linguagem (lógos), é a intenctio obliquea da narrativa que começo a tecer. Deslocar os fios que conduziram as últimas reflexões “amorosas” sem, no entanto, perder o sentido teleológico do pensamento, pode ser para mim, estender os rizomas até o alcance do que pode ser nominado como “paixão”.
Se o amor pode ser compreendido como expressão e superação do experimentum linguae com vistas a um modo de ser no mundo, ao possibilitar o encontro do “um” o “outro”, através de diversas manifestações (amor conjugal, amor ao amigo, amor pela espécie), tal não ocorre no meu entendimento, com a paixão. Uma larga tradição ocidental designa a mesma como uma das manifestações do amor. Um sentimento com gradações que iriam da ternura ao arrebatamento, do suave ao ensandecido; tomam-na também como um sentimento intenso, mas passageiro, como um sentir profundo mas ao mesmo tempo fugaz, nada parecido com as demais experiências amorosas, mas considerada uma de suas modalidades, um amor-paixão ou então uma paixão amorosa.
Experimentando da linguagem a palavra “paixão”, percebo que a mesma traz consigo sutilezas não encontráveis no ideal amoroso. Este me remete a um plural de significações que tem a ver como vínculos estáveis, equilibrados, que de algum modo garantem a superação da “insociabilidade natural” que fala Kant; assim como do surgimento da filia, da amizade entre os homens, entre os cônjuges e seus descendentes, como fala Aristóteles. Algo que tem a ver com a constituição da polis, com a evolução dos princípios éticos, dos valores morais, da segurança da comunidade, enquanto o amor pelo outro que nem chego a conhecer, mas que devo amá-lo enquanto espécie. Aquela, a paixão, me remete a perda de sentido de tais pilares da sociabilidade. Acontece como algo completamente inusitado, sem palavras que justifiquem tal arrebatamento que me invade imperiosamente, como se apenas existissem “eu” e o objeto da paixão, que eu desejo comer, devorar, pois já estou sendo devorado por ele, que surge sem nenhuma idealização minha, como um nada que a tudo contêm. Eros e thanatos unem-se de tal forma neste sentimento, que nem o instinto natural de sobrevivência, nem a atitude racional, conseguem conter a lascívia que domina o corpo.
A paixão é hybris, desmesura, acometimento. Incorpora-se enquanto totalidade, alcançando os sentidos, os pensamentos e impondo um desejar que aponta para o gozo do abandonar-se na sua experiência; é lúdica e mortal. Quem a vivencia embriaga-se com as poções que só aos deuses é permitido ingerir. Experiência que relatada, só emite balbucios que denunciam uma fase prélinguística do humano. Sentimento de infinitude, enquanto momento atemporal e cósmico; de esquecimento da morais convencionais que traz consigo um estar acima do bem e do mal; de liberdade das amarras da racionalização e incorporando assim a condenação ad aeternum do libertino, naquele momento único e indescritível.

29 de set. de 2009


O amor, uma experiência... da linguagem
PARTE III
Albano Marcos Bastos Pêpe

Conforme relatos de alguns pensadores com quem dialoguei anteriormente, o amor pode ser entendido como algo inscrito no DNA da nossa espécie. Entendo que neste sentido, dispomos de estímulos sensoriais e sensíveis que garantem ações voltadas para a sobrevivência e a reprodução. Desencantados da linguagem que o reveste através de narrativas orais e escritas enquanto plural de significações romanceadas, parece-me que nos resta o consolo de sabermos que além de entidades tecnológicas, de seres racionais e de filhos “exclusivos” de Deus, somos também animais como os demais animais, com instintos básicos que nos remetem a preservar a espécie.
Ora, se amar pode ser entendido como algo “bom, prazeroso e agradável e útil”, sendo também a possibilidade de vencermos nossos temores instintivos em relação ao outro e assim viver comunitariamente, posso, ato contínuo, dizer que somos também instintivamente “amáveis” e que tal instinto nos preserva vivos, associado, é claro, a outros mecanismos biológicos tais como a sexualidade via acasalamento, o medo, a fome, a sede, a adequação dos órgãos sexuais com vistas à fornicação, a produção de adrenalina para reações mais drásticas. Por outro lado, animais dotados de linguagem como também somos, vivemos o simbólico, a representação construída ao tratarmos de nossas vivências e convivências. Sendo, portanto “impossível” para nós, a percepção de nossas raízes “naturais” sem representá-las linguisticamente, ou seja, simbolicamente.
Seguindo ainda esta linha de raciocínio, o amor em suas infinitas derivações, nada mais é que a expressão do experimentum linguae de um corpo que se pensa e que se faz sigética, construção silenciosa de sentido, sem que a priori, precise comunicar através da fala ou da escrita, o fazendo tão somente pela voz, expressão corporal de todos os animais. A espécie vence sua insociabilidade natural em nome de uma outra força natural: sua preservação enquanto espécie, permanência e continuidade.
Lembrando Aristóteles, que afirmava: “a amizade conjugal parece existir por força do instinto, uma vez que o ser humano é, por natureza, um animal que acasala”, podemos pensar que o amor conjugal, o amor entre os cônjuges e as crias, frutos do acasalamento, tem suas raízes fincadas na conduta instintiva, comum a todos os animais, voltada para a preservação da vida, nada de emoções e sentimentos espetaculares românticos. Tão somente as espécies, que garantidas (ou não) por suas capacidades de adaptação e evolução, acasalam, reproduzem e protegem instintivamente seus descendentes diretos.
A amizade tem para o Estagirita o sentido forte da virtude primeira enquanto filia, ou seja, o relacionamento entre pessoas, que vai da impessoalidade desapaixonada até o relacionamento intimo de amantes, o que viria a permitir o convívio na polis e na oika. O surgimento e desenvolvimento das outras virtudes, notadamente as morais (nomeadas por ele de secundárias), tem a ver com a consolidação das relações comunitárias e a evolução de regras morais, teológicas e jurídicas, que através dos tempos se apropriam do instintivo manifesto tão somente pela voz, ofertando ao mesmo, novos sentidos que o remetem para o plano da representação, dando existência e densidade a palavras tais como amizade, amor, paixão, gozo, desejo. O estado de natureza deixa de existir (não no tempo apontado por Hobbes) enquanto physis e inaugura-se um novo momento para a espécie, o momento do ethos, da formação cultural e da subjetividade, resultado da passagem da voz para a “infância da linguagem”: o silêncio da linguagem e, para finalmente se constituir como linguagem definitivamente, lógos e gramma.
Trágicos e patéticos seres que somos, silenciamos as vozes ancestrais de nossos corpos criando tão somente palavras para os desideratos naturais. Palavras com sentidos criados artificialmente, que, vias de regras, nada anunciam do que somos ou sentimos. Palavras que repetimos à exaustão como que para nos convencermos que sabemos lidar com nossas vidas, nossos corpos e os outros corpos. Em momento algum, notadamente na modernidade, aprendemos a falar com nosso corpo, a escutá-lo, ou seja, a nos escutar através dos sentidos corpóreos que nos permitiriam acesso à morada e ao outro, visto que fizemos da linguagem nossa única morada. “A linguagem é a morado do ser”, dizem filósofos modernos. Portanto, amar só pode ser uma palavra vazia, sem repercussão para os corpos emudecidos por tantas falas proferidas em discursos racionais que a “tudo” explicam e justificam.
A ausência de sentido das palavras que anunciam uma “palavra amorosa” deve-se, provavelmente, ao fato de que nos confundimos no uso da palavra-ação. Dizemos o que não sentimos e sentimos o que não sabemos dizer e assim, pensamos que não sabemos exprimir os sentimentos que atravessam o corpóreo na busca incansável dos outros corpos que o esperam, para...
Mas existem os mitos contemporâneos criados para que todos acreditem que nossos corpos podem ser tão modernos quanto os objetos para eles criados nos laboratórios técnico-científicos; nas clínicas de cirurgia plástica, de próteses (seio, bunda, pênis, cabelos, pseudo-vagina); nos laboratórios que produzem fármacos direcionados, do controle da reprodução, à otimização do desempenho sexual; aos estados d’alma, “tratados” pelos “psi” acadêmicos. Nesta lista de produtos, palavras viram próteses que dizem das próteses em que nossos corpos são transformados.
Cada vez mais somos distanciados da existência das vozes silentes dos nossos corpos originais, se é que ainda somos tal existir. Que lástima, morreremos assim como todos os demais corpos e, provavelmente, ausentes da apreensão dos mesmos, visto o cogito cartesiano que nos habita; visto que nunca fomos nem seremos modernos, quando o são tão somente nossas próteses.

O amor, uma experiência... da linguagem
PARTE II
Albano Marcos Bastos Pêpe

No Livro VIII da “Ética a Nicomaco”, Aristóteles assim começa a descrever o amor na perspectiva da filia, a amizade: “Nossa tarefa a seguir será tratar da amizade, pois esta é uma virtude, além do que constitui uma das exigências mais imprescindíveis da vida – ninguém, com efeito, optaria por viver sem amigos, mesmo que possuísse todos os outros bens (...) Por isso louvamos os homens que amam seus semelhantes (...) e se os homens são amigos, não há necessidade de justiça entre eles, ao passo que ser meramente justo não basta, não dispensando um sentimento de amizade. Na verdade, a forma mais elevada de justiça parece conter um elemento de amizade”.
Neste relato me faço acompanhar do Estagirita para juntos fazermos mais um experimentum linguae, desta feita vinculando o amor com a amizade, com um sentimento que pressupõe desde sempre a existência de um ou alguns outros. A amizade como queremos abordá-la, resulta do reconhecimento de outra pessoa através da boa vontade ou afeição, notadamente quando se dá a reciprocidade, quando uma predisposição instala-se como uma deferência. “A amizade entre os seres humanos, portanto, requer que estes (a) sintam afeição (boa vontade) recíproca, ou seja, queiram o bem um do outro, (b) estejam cientes (reconheçam) da afeição um do outro e (c) a causa ou fundamento de sua afeição tem que ser uma das qualidades amáveis (bom, prazeroso e agradável e útil)”, faz questão de salientar o velho peripatético nas nossas caminhadas em torno do lago.
Portanto, nesta abordagem da experiência da linguagem, estendemos rizomaticamente o conceito a outros conceitos para, finalmente alcançarmos o plano da vivência, aquele onde a Palavra significa a via de acesso para os diversos planos da realidade e quiçá, do real. Distanciamo-nos um pouco, visto que tanto Aristóteles quanto eu, temos ritmos próprios de caminhar e pensar, e isso não nos preocupa porque, ao final das contas somos amigos. E nesta “andança solo”, me volto recorrente para Kant que, por sua vez, provoca com a questão da “natural insociabilidade social da espécie humana. Segundo ele, precisamos do outro da espécie para continuarmos a existir como humanos. Fico cismando, pensando com meus botões, se é que eles existem, entica Descartes. A evolução humana em direção a sua humanidade depende do viver coletivamente entre seus pares. Concordo com o sábio de Konisberg: eis um elemento a mais para referendar a questão da amizade colocada pelo meu companheiro de caminhada. E como caminhar juntos? Como superar os temores naturais em relação ao outro que desconheço e que se me apresenta como uma ameça? Para mim, a resposta mais simples é, construindo solidamente e solidariamente um sentimento de amizade, um sentimento amoroso que pode vincular um e outro em direção ao sempre desconhecido, aos jogos circunstanciais não previsíveis. Para tanto, temos que contar com nossa boa vontade assim como com a do outro. Boa vontade a ser cultivada pela afeição, pelos afetos a serem construídos continuamente e, para tanto precisamos desenvolver o experimentum linguae para além de sua “dimensão perfeitamente vazia”, para além da arte de falar através do silêncio.
Ante o outro, incomodado com sua presença, com a possibilidade de me ver despido para ele, desnudado das armaduras naturais, sinto-me frágil, mas, ao mesmo tempo reconheço uma fragilidade maior: a solidão, a mais absoluta solidão, que ameaça como o Mal de Alzheimer, que me levaria definitivamente ao esquecimento, esquecimento de mim mesmo, do que sou como espécie, do que sou enquanto subjetividade.
Como iniciar o rito da aproximação? Penso no rito do acasalamento das outras espécies, pleno de sentido na escolha dos pares para a fornicação que garante a sobrevivência de cada espécie. Penso nas vozes proferidas que indicam a recepção do outro. Penso os movimentos, os gorjeios, as danças executadas, as lutas entre os pretendentes(muitas vezes mortais, como entre os leões marinhos), nos feromônios exalados. Penso enfim, na cumplicidade de Gaia com tais animais e, às vezes sinto-me órfão de physis. Talvez seja este o preço de deter além da voz, a fala, a linguagem. E muito mais quando ela retêm a possibilidade de ser sem enunciar-se, sendo tão somente sigética, uma construção do silêncio, nela, a linguagem que se constitui na condição única de aproximação com o outro, enquanto lugar de fala e escuta amorosas. Meu corpo provavelmente não exala feromônios, e se faz, nós humanos não nos apercebemos de seus odores, seus cheiros, suas magias.
A construção de filia, a amizade depende única e exclusivamente da boa vontade, como me relembra Aristóteles ao voltar a caminhar ao meu lado. “Ora, (diz ele) são aqueles que querem o bem de seus amigos em favor de seus amigos que são amigos no sentido mais pleno, visto que se amam por eles mesmos, não acidentalmente (...) Essa forma de amizade é perfeita seja do prisma da duração, seja daqueles demais atributos da amizade e em todos os aspectos cada uma das partes recebe da outra benefícios idênticos ou similares, atitude correta que se espera de amigos”.
Após escutar tais argumentos, reconcilio-me com physis ao perceber que ela dotou-me de atributos que, se desenvolvidos com o desprendimento necessário, que coloco como dever, como boa vontade, posso caminhar em direção ao outro e, em um movimento harmônico me permitir sua aproximação amorosamente, conciliando, quem sabe, o experimentum linguae, com minha condição de, ao falar ser realmente um criador de mundos.
O Estagirita e eu nos distanciamos. Ele, de volta à sua Grécia, à Estagira. Eu, de volta à minha Itaara e à Nascente do Lago.

O amor, uma experiência... da linguagem

Provocado pelos looongos textos que o Warat tem escrito nos últimos três dias, por força de ofício, fico a pensar e a reconhecer o que já sei desde muito: sou parco com a escrita e de uma loquacidade muitas vezes irritante. Portanto creio que serei breve em algumas considerações excêntricas sobre o tema que nos tem ocupado, ora com maior intensidade, ora com menor intensidade.
Parto de algumas premissas, algumas já abordadas, outras provavelmente não:
1. amor incondicional –
Conforme já notifiquei ao público que visita meu fotolog, acredito na existência de um sentimento (por falta de uma palavra melhor) que é desenvolvido pelas fêmeas das diversas espécies animais (inclusive a mulher) em relação aos seres que são gerados por elas. Condutas que podem ser observadas como cuidados, atenção, dedicação, desprendimento, proteção (muitas vezes colocando em risco a própria vida). Enfim, ações típicas dos animais que instintivamente preservam suas espécies. Afora a espécie humana, as demais não definem tais atos, simplesmente os cometem, garantindo a existência de gerações vindouras. Assim o farão a filha, a filha da filha e assim por diante, sem palavras, sem exemplos a serem seguidos, sem orientação da comunidade a quem pertencem. No caso das fêmeas humanas, possibilidade da reprodução é mediada pelas palavras que dão ou não sentido à ação reprodutiva. Coisas tipo realização pessoal ou não; relações conjugais ou não; convenções sociais ou não; interesses pecuniários ou não; uma noite de desatinos ou não; um impulso amoroso ou não (neste lugar é onde começam as questões, os problemas e as definições do que seja a procriação como ato amoroso com um outro ser, nomeado o amado, o único, pelo menos naquele átimo)
Do amor instintivo pela cria, passa-se para o amor não instintivo pelo outro, convêm salientar, o que não foi originado em seu útero (por favor, nada de teses edipianas, jocastianas, etc.). Aí começa o busílis, a confusão que parece não ter fim e, acredito nunca terá, pelo menos enquanto esta palavra constar nos dicionários e nas “cantadas” exercitadas por todos nós, humanos. Bem, a partir deste momento uma nova figura emerge, a do homem, é claro. Eu Falava de uma manifestação típica do sexo feminino, o sexo que é capaz de desenvolver uma gestação onde um outro ser desabrocha ao abrigo de um útero apoiado num corpo capaz de realizar tal façanha. Mas dentre os motivos simbólicos da reprodução feminina, eis que surge o homem, sujeito e objeto do sentimento dito amoroso. Simplificando, o reprodutor (assim como os machos das outras espécies), o que contribui com o espermatozóide para fazer com o óvulo uma junção que viabiliza o embrião, futuro ser humano. Neste momento, por estas contrariedades da vida moderna, convêm salientar que o ato sexual pode ser dispensado, assim como a presença do reprodutor no ato da procriação, ou quem seja ele enquanto pessoa. Para tanto, existem as tão conhecidas técnicas de inseminação artificial já consagradas nas práticas da reprodução assistida.
Portanto, o desejo da procriação pode dispensar o desejo amoroso, mas ele persiste no imaginário popular. Ter um filho com quem se ama é o ápice da felicidade, diriam uns e umas, antes dos movimentados processos judiciais, tendo em vista a partilha de bens, a pensão alimentícia e de quem vai ficar com quem, residindo ou nos finais de semana e nas férias (não mais conjugais, como costuma acontecer festivamente). Mas enfim, a palavra amorosa está inscrita nesta modalidade de justificativa da reprodução.
Amar, tendo o que como meta a procriação, a formação de uma família (célula mater da sociedade, como o dizia Rui Barbosa), o viver de amantes que juram estar juntos até que a morte os separe, constitui-se hoje numa fantasia já evanescente, desprovida de sentido, que durou no mundo ocidental pouco mais de dois séculos. E que levava como inscrição o nome de amor eterno, implicando matrimônio, com direito às cerimônias religiosas e civis, incluindo como bonificação, a lua-de-mel (neste momento me vem à cabeça, não sei por que, as palavras do poeta: “ai que saudades que tenho, da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais”). Tomemos isto talvez, como um pequeníssimo hiato da nossa espécie no mundo ocidental, facilmente esquecível. Algo como o romantismo: alguém se lembra do romantismo, a não ser como uma fase da literatura ocidental?
Concluo este momento citando Aristóteles, que no De Anima, trata da amizade, da filia. Importa-me tal citação porque ela inclui o conceito de amizade conjugal. Segundo ele: “a amizade conjugal parece existir por força do instinto, uma vez que o ser humano é, por natureza, um animal que acasala, ainda mais que é um animal político, na medida em que a família é uma instituição mais antiga do que o Estado e a proliferação uma característica mais geral na vida animal. Assim, enquanto no que tange às outras espécies animais, a união dos sexos visa apenas a perpetuação da espécie, os seres humanos vivem juntos não apenas para a perpetuação da espécie, como também para prover o que é necessário à vida. (...) Consequentemente, a amizade conjugal parece ser uma combinação de amizade baseada na utilidade e amizade fundada no prazer”. Seria esta uma definição razoável de amor? Caso estejamos de acordo com o Estagirita, a questão está encerrada. Caso não, continuemos a argumentação.
Até a próxima.
Albano Pêpe

24 de set. de 2009

Um prefácio compartilhado

Albano Marcos Bastos Pêpe


Pensemos as rotas e os roteiros “estabelecidos” para uma turnê de um circo mambembe medieval que se transporta para a modernidade, passando por uma dessas dobras pensadas pela física. Seu roteirista, também autor, ator, diretor, mágico, malabarista, palhaço e bailarino, atende por Luis Alberto Warat, o que faz deste nome batismal, referência ante os diversos personas que mimeticamente pululam no picadeiro da sua escrita. Convêm salientar que esta troupe de um, vive em uma nave denominada Gramma. Quanto aos espetáculos com suas fantasias, suas magias e malabarismos, podem ser vistos/vividos/lidos quando o circo promove mais uma apresentação e os cartazes anunciam o lançamento de mais uma temporada. Mas nunca estranhem se o próprio Warat for encontrado nos cabarés, cafés e tabernas fazendo pré-lançamentos de obras nunca escritas e de outras há muito escritas, nos rincões deste mundo sem fim.
Seu novo espetáculo chama-se “O Materialismo Mágico”, que promete algumas atrações coadjuvadas por Breton, Artaud, Cortazar, Lispector, Borges, Sartre, Barthes e tantas outras “estrelas” do seu elenco de convidados.
Prefiro chamar este novo livro de narrativa. Um relato que traz a marca inconfundível da escrita waratiana. Sua obra alcança os mais diversos matizes que a reflexão levada pela inquietude contempla. É um texto filosófico, visto que é uma contemplação caracterizada por um dizer transcendental que toca os limites de um experimentum linguae, da experiência da linguagem com ela mesma. Sendo ao mesmo tempo o lugar de uma escuta sensível e comprometida com as vivências. É um texto de um Filósofo e não de um historiador da Filosofia, que é o formato imposto pelas faculdades de Filosofia aos seus incautos alunos. Seus interlocutores, pensadores que o acompanham ao longo de sua vida, não são datados simplesmente, pois não fazem parte, enquanto interlocutores, de uma prova da sua erudição. São tão somente “estrelas” postas no plano de seu pensamento como referências de falas que se aproximam e que gestam diálogos, diatribes de amigos.
Em suas viagens utiliza o astrolábio de Hiparco o grego, para não perder-se em navegações orientadas por modernos mapas de navegação. Atravessa os oceanos da linguagem, tendo como instrumentos, o primitivo instrumento e sua condição desejante. Ele quer o desvelamento do signo que teima em permanecer atrelado a relações formais da moderna razão ocidental. Da razão racionalizante que impossibilita o acesso ao plano real, ao plano do corpo enquanto morada e sentido. Quer que a palavra se revele, se desnude e recupere sua condição aurática,manifesta na alquimia, na carnavalização, no fantástico. Procura intuitivamente, aquilo que Heidegger chamava de ilatência, ou seja, a desocultação, o não oculto que a palavra traz consigo, para com isso mostrar que podemos efetivamente nos ver, enquanto construção permanente, enquanto dúvida, incerteza e devir diante de um Cosmos infinito ante seres finitos que somos.
O surrealismo é uma das embarcações que Warat utiliza para buscar nos signos para que eles se liberem daquilo que lhes é imposto ao significar. Talvez como a experiência de maravilhar-se com a existência do mundo como um milagre, como o diria Wittgenstein. Para Warat, assim como para os demais surrealistas, as palavras assim como a arte não existem para apaziguar, muito pelo contrário, existem para vivenciarmos o que está reprimido, apresentar o conflito provocado pelas enunciações, pelas definições que tão somente servem para castrar o desejante que há em cada um.
Contrapondo-se ao trivial dos saberes instituídos e consagrados como verdadeiros, o texto waratiano envereda pelas trilhas do fantástico que traz consigo o onírico, o erótico, a alquimia. Algo como uma hermenêutica dos devires, dos movimentos que desocultam mas que não se deixam prender em definições, em formulas definitivas. Ele, ao seu modo, aventura-se na busca de uma pedagogia da imaginação criadora, de uma pedagogia-imaginação que não se prenda na busca de uma verdade que já está fossilizada. As pedagogias que implantam próteses que impedem o livre caminhar devem ser substituídas pela produção da incerterza, da dúvida que impulsiona para os caminhos que devem ser trilhados com os próprios pés. Como diziam os povos Guaranis: nimuendaju, ensinar a caminhar com os próprios pés.
Ensina-nos finalmente o Warat, que devemos estar atentos à linguagem poética que nos atravessa e que fazemos questão de esquecer, porque ela não tem compromissos com a produção das verdades científicas, porque ela não produz tecnologias, porque ela não nos coloca adequadamente no mercado de trabalho. E isto é razoável, visto que a poesia tão somente pode nos mostrar quem somos, uns e outros, tão próximos e tão distantes quando nos tratamos maquinicamente. Esta é uma boa encruzilhada para decidirmos os rumos que queremos, que podemos querer e que sabemos o que podemos querer.
Nesta sua generosidade mambembe, em sua morada planetária, expressa por um corpo que não se esquiva das marcas de tantas batalhas, ele, às vezes encontra guarida nas tabernas medievais que sua memória ancestral traz consigo, convivendo com os vates, com os loucos, com os desgarrados; às vezes nos cafés, onde deposita suas crenças, as mais simples como as das crianças e, as mais terríveis como a de um oráculo que despeja suas metáforas que vaticinam novas eras; às vezes nos cabarés ao lado de Macunaíma e Robespierre servindo e sorvendo delicadamente Vino & Sofia e, às vezes na oika onde brinca despreocupadamente criança, ao lado de outra criança: sua neta... Em cada uma destas paradas, deposita seu amor pela espécie. Sua filia, amizade amorosa sem restrições, que também é depositada nesta narrativa que humildemente apresento ao lado de Leonel Severo Rocha.
Enfim, aguardemos o próximo momento “espetacular”,ou seja, o momento não previsível de uma nova composição alquímica que seja transformada em mais uma narrativa deste mago que persegue a criação do instante em que a palavra seja acompanhada da sua ilatencia.

23 de set. de 2009

O amor e o experimentum linguae

Este texto foi pensado e escrito em homenagem a Luis Alberto Warat, em nome da sua teimosia em inscrever a palavra amorosa desde sempre nos seus atos, humanos, demasiadamente humanos. Amparado em seu caule rizomático, ele sempre deixa cair sementes nas quais deposita a esperança de que floresçam, não se importando com a aridez dos solos percorridos e a percorrer.
Albano Marcos Bastos Pêpe

Entre a voz (phoné), a linguagem (lógos) e a gramática (gramma) acontece um processo evolutivo que vem ocorrendo há aproximadamente cinqüenta mil anos com o homo sapiens sapiens. Afastando-se da rudeza e simplicidade da voz que é comum a todos os animais, seu ethos, sua oikia e sua polis têm o homem seus alicerces fundados. Sua linguagem nomeia os objetos físicos que o circundam, sejam artefatos produzidos, sejam os demais seres naturais, seja ele mesmo enquanto sujeito e objeto a ser capturado nas redes das enunciações. Tais redes formam cadeias de elementos lingüísticos que representam, isto mesmo, representam os objetos capturados pelos sentidos, tanto os naturais quanto os construídos. Estamos navegando em palavras que traduzem a imanência em constructos transcendentais e que, produzem sentidos convencionados históricamente às experiências corporais. Nunca dizemos o real, ele é o nous, a essência como diria Kant, ficamos tão somente frente ao seu pórtico. Aportamos tão somente no phainómenon, no mundo fenomênico. Condenação de uma espécie que ousou ir além da voz.
Em um momento concomitante e/ou subseqüente do surgimento da linguagem, partimos para o experimentum linguae, que nos é lembrado por Agamben, como “a infância, na qual os limites da linguagem não são buscados fora da linguagem, na direção de sua referência, mas de uma experiência da linguagem como tal, na sua pura autoreferencialidade”. Abandonando agora este autor, diria que tal movimento solto, livre das amarras dos referentes materiais, me permitem inscrever dentre outros o amor como um experimentum linguae. Warat, ao dar título a um de seus livros, assim o nomeia: O amor tomado pelo amor. Parece-me que tal inscrição o remete a uma experiência da linguagem diante do inefável, “aquilo que não se pode exprimir por palavras, o indizível”. Ou, em outro movimento: o campo da sigética, como o queria Heidegger ao defini-la “como a ciência ou a arte (de falar através) do silêncio”.
O silencio na linguagem não é o silencio do pensamento. Sendo para mim, a elaboração da mais delicada tessitura possível ao animal falante que logo somos. É o colocar-se voluntariamente numa encruzilhada que pode nos levar a uma floresta de palavras, a um emaranhado rizomático no qual, quase sempre podemos nos perder. Pois pensar o que o pensamento tão somente captura em seu experimentum linguae, nos faz tentar dizer o inefável, ou seja, romper o silêncio instituído na linguagem para que o pensamento nela se manifeste através da fala, do discurso.
Voltemos ao amor e à provocação do amor tomado pelo amor. Simploriamente poderíamos dizer que não passa de um tautologia, ou seja, uma “proposição que tem por sujeito e objeto um mesmo conceito”, mas não creio que seja assim. O amor só pode neste entendimento, ser pensado e falado a partir dele mesmo enquanto experiência da linguagem desprovida de uma parte objecti. Mas isto não é suficiente para esta palavra que está inscrita na linguagem humana enquanto memória ancestral que se refere aos estados d’alma descritos pelas mais diversas civilizações ao longo dos séculos. Mas como romper o silêncio que a linguagem se impõe para estabelecer seu universo autoreferencial? Mas também como não pensar o sentido inaugural de amor, senão no praeconcutare, no perguntar o mais íntimo do que somos, ou seja, enquanto construção autoreferencial?
Creio que o pensar o amor como um dos experimentum linguae por nós elaborado sem algo de material a predicar, é algo coerente e óbvio. No entanto, se a linguagem é a morada do ser, conforme certa tradição filosófica, este ser que é ente, parece-me, está condenado a expressar sensivelmente tudo o que pensa, inclusive os experimentos da linguagem. Dito isto, procuro não correr o risco de simplificar tal equação. Ao contrário, tento capturá-la em sua magnitude e complexidade.
Ao ver o conceito de amor repousar nas enunciações típicas do mundo da vida, defronto-me com uma verdadeira Torre de Babel, onde as gramáticas tornam-se ininteligíveis umas para as outras. Visto que, parece-me, falar do amor traz consigo um implícito: falar da experiência amorosa. Pois também o é referir-se ao “outro”, a quem afirmo amar ancorado na minha experiência da linguagem, enquanto fala e não enquanto discurso. Assim também este “outro” o fará e assim sucessivamente, ad infinitum. Eis a concretude da Torre de Babel, instituída e instituinte. Se este quadro tem sua gravidade e complexidade enquanto manifestação da fala, pensemos no que ocorre quando esta fala inscreve-se no plano do discurso, da argumentação com vistas aos procedimentos comunicacionais razoáveis! Eis o ápice da já conhecida Torre.

21 de set. de 2009

O Libertino - parte II -



Roteiro: Albano Pêpe, ora confinado em Arkan, em carreira solo, visto que o outro roteirista evadiu-se deste manicômio judiciário e está refugiado em Yapeyu

Permitam-me ser franco neste começo: vocês não vão gostar de mim. Os cavalheiros terão inveja; as senhoras, nojo.Vocês não vão gostar de mim agora. Passarão a gostar menos com o tempo. Senhoras um aviso: quero transar. O tempo todo. Não estou me gabando nem opinando, é apenas uma constatação médica: eu sou promíscuo. E vocês me verão sendo promíscuo, e irão suspirar. Não façam isso. É melhor, para vocês, ver e tirar suas conclusões de longe... do que eu enfiar meu pênis dentro de sua saia. Cavalheiros, não se desesperem: também sou promíscuo com vocês, e vale a mesma advertência. Controlem suas ereções até eu acabar de falar. Mas, mais tarde, quando transarem, e mais tarde vocês vão transar... esperarei isso de vocês e saberei, se me decepcionarem... eu quero que transem com minha imagem em miniatura rastejando em suas gônadas. Sintam como era para mim, como é para mim... e pensem: “Este tremor foi o mesmo tremor que ele sentiu? Ele conheceu algo mais profundo? Ou existe alguma parede de miséria na qual todos batemos a cabeça... naquele momento luminoso e eterno?” É isso. Esse foi meu prólogo. Nada rimado, nada de falsa modéstia. Espero que não queiram isso. Sou John Wilmot, o segundo Conde de Rochester... e não quero que vocês gostem de mim. ( prólogo)
E, finalmente, ali ele jaz. O convertido no leito de morte. O devasso crente.Eu não sabia me conter, não é mesmo? Dê-me vinho eu bebo tudo e jogo a garrafa vazia no mundo. Mostre-me Nosso Senhor Jesus em agonia... e subo na cruz, tiro seus pregos e os coloco em minhas mãos. Aqui vou eu, arrastando-me do mundo... com minha saliva fresca sobre a Bíblia. Olho a cabeça de um alfinete... e vejo anjos dançando. E então... gostam de mim agora? Gostam de mim agora? Gostam de mim agora? Gostam de mim... agora? (epílogo)

Cena um e única -
Em tons escuros, como que deixados como rastros das sépias, o rosto de Johnny Deep, mimetizado John Wilmot, Conde de Rochester, taça de vinho levada à boca delicadamente, inicia e dá fim ao filme “O Libertino”. Curtos monólogos que abrem e fecham a cortina fílmica de um recorte da vida de um libertinus, que do latim pode ser traduzido como “filho de liberto”, o filho do escravo que passou a ser livre. Na fácil linguagem dos copistas, dos repetidores: “ livre de qualquer moral, devasso, dissoluto, depravado, licencioso”.
É nesta encruzilhada que quero me colocar, a mim e a você que se dispõe a esta narrativa. Que tanto pode levá-lo ao vômito quanto ao orgasmo. Pouco importa, são tão somente excrementos expelidos pelas vias naturais. A mera presença do Conde de Rochester pode nos tirar de um “agradável” estado de servidão voluntária, da passividade que acompanha via de regras nossas vidas, inúteis para nós mesmos e extremamente úteis para os que nos mantém escravos de suas vontades... ou, não!
O Conde Rochester viveu para os impulsos dos sentidos, reverenciando suas inclinações, como diria Kant. Tal filho do liberto, nunca permitiu que sua LIBERDADE fosse admoestada nem pelos valores, nem pelas moralinas do seu tempo: quando... ciência e intercurso sexual floresceram... juntamente com a guerra, desastres naturais, conflito político, problemas econômicos e consumo abusivo de álcool... veio a ressaca”, conforme nos é narrado. Filho de uma Inglaterra decadente e profundamente moralista, o que é uma marca registrada dos tempos de poderes absolutistas (teocracias, monarquias, democracias, ditaduras) e das sociedades ali gestadas, corrompidas e corruptas. Assimilando sua época, tornou-se a encarnação viva da mesma, com a sutil diferença de ser despojado de discursos morais e de gestos dissimulados. Enfim, era um Libertino, um filho do liberto, que conhecia a escravidão da sua comunidade e que a ela não se submetia. Frente a hipocrisia de seus pares, expunha sua embriaguês rotineira, sua vida promíscua com a prostitutas e as aristocratas, assim como com os jovens rapazes que dele se aproximavam.
Anarquista sem bandeiras ideológicas, expunha seu amigo, Charles II a situações constrangedoras com peças teatrais, encomendadas pelo rei para servirem de exemplo moral do reino, eram escritas e encenadas por atores travestidos em órgãos sexuais que faziam a critica dos costumes e do reinado.
Sua mãe, representava a mulher típica da aristocracia decadente. Profunda religiosidade discursiva que ocultava desejos secretos pelo filho de vida promíscua. Gostaria, creio, de ser uma de suas prostitutas.
Sua esposa, Elisabeth, jovem burguesa raptada por ele quando tinha dezoito anos ainda virgem, portadora de um excelente dote, a tudo submetia-se em nome de sua nova condição aristocrática. Visto que faziam parte do pacote, ou seja, do contrato matrimonial, o conde de Rochester e a partilha da raiz aristocrática do Libertino
Nosso Conde Rochester, sentia a profunda dissimulação da sociedade decadente em que vivia. Dos salões aristocráticos, do Palácio Real, dos lupanares e das tabernas fedorentas e sujas: apenas alguns passos no meio da lama das ruas de Londres. Todos eram atores de uma ópera perversa e pobre de sentido. Por jogos aparentemente estranhos, sua paixão era o teatro, seu sonho: escrever uma grande obra teatral. Também na cena teatral encontrou a grande paixão de sua libertina vida: LIzzie, uma atriz medíocre de teatro que teve seu talento delicadamente desvelado por ele.
Sua vida, escrita e teatralizada por um de seus bajuladores transforma-se em sucesso cênico,levando consigo sua Lizzie. Sua vida do outro lado do palco, ele a desempenha tragicamente. Abandonado pela amada, portador de sífilis e fugindo de um mandato de prisão determinado por Charles II, torna-se um palhaço mambembe coadjuvado por uma fiel prostituta e por um lacaio ladrão.
Como roteirista e com a liberdade que a ninguém permito atravessar, amontôo cenas desprovidas de tempo lógico (típico dos porteiros de hotel chinfrim, que adoram dar explicações):
Em um pequeno diálogo de despedida entre eles, ouve-se:
- Conde de Rochester: eu jamais lhe perdoarei por me ensinar a amar a vida.
= Lizzie (a atriz amante): então estamos quites: sua lição para mim foi viver, e a minha para você foi a propria vida. Não precisamos mais nos ver...
Ao seu leito de morte, sua mãe faz penetrar um padre, para que ele, o Libertino Conde de Rochester, fizesse a entrega de seu corpo dissoluto para o deus dos cristãos, já que não o entregara para ela.
Um final feliz, não ouso pensar para quem:
Pranteado em sua câmara mortuária pela fiel esposa e por sua mãe, sabedoras, que ao menos naquela noite ele não irá para as tabernas e prostíbulos londrinos embriagar-se e satisfazer seu eterno penis erectus; paralelamente, tem sua biografia ovacionada no palco cênico, de onde Dizzie, a atriz, em prantos arrebata entre palmas e uivos, a gratidão do rei com sua corte, assim como da massa, finalmente perdoados de seus pequenos vícios e pecados, pelo fim da via crucis do Libertino.
A isto chamo de AMORES DESMEDIDOS, o mais fica parecendo jogos de cena, dignos não do Teatro, mas dos convescotes com os quais estamos habituados a conviver.
Cai o pano e a cena fílmica se esvai. E para nós... pipoca e coca-cola.

19 de set. de 2009

Caminhos que podem levar para Yapeyu - Prolegomena


Estou perdido, ou pelo menos penso que estou, perdido no mato que pode ser uma floresta ou até mesmo uma cidade cosmopolita, ou um vilarejo até. Estou perdido mas sei que estou em algum lugar da América do Sul, e isto já é alguma coisa para tomar minha caminhada.
Procuro um lugar chamado Yapeyu, que nem sei se existe. Ouvi falar dele através de dois amigos: um que é o Warat, que vive gritando aos quatro cantos do mundo que é patafísico, isto mesmo, patafísico. Às vezes creio que ele foi abduzido por algum extraterrestre, sei não!
O outro, ou melhor, a outra é a Andréa. Conhecemos-nos através de jornadas internetiano-cibernéticas e até chegamos a nos ver, ao vivo e a cores. Mulher sensual e enigmática, assim como são as fêmeas da nossa espécie.
Pois é, foi a partir dos relatos de ambos, o Warat falando de uma Taberna que fica em Yapeyu, onde ele afirme que vive ao lado dos xamãs Guaranis e que à noite costuma ir para a tal Taberna, cuja dona, a dona Doña que me parece ser aparentada da Lilith, aquela que Deus mandou para o inferno como castigo por ter seduzido Adão, até então prometido para uma tal de Eva, com vistas ao projeto demográfico de Deus para este pequeno planeta. Muito complicado para meu parco entendimento. Mas enfim, segundo ele a tal casa noturna seria conhecida como a Taberna de dona Doña.
Por outro lado, a Andréa colocou no frontispício da dita cuja, uma placa muito bonita com a efígie de uma mulher e com o nome Taberna Dona Flor. E ainda, segundo sua narrativa, havia encontrado na mesma, muitos amigos, dentre eles o Warat, este seu humilde narrador, o Alexandre, a Rosa, dentre outros. É né, sabem como são as coisas, eu não me lembro bem de ter estado lá, mas porre é porre. Se ela afirma, eu fico na posição cartesiana, que dizia que tinha – ele, Descartes - imensa dificuldade de distinguir sonho e realidade (ele jurava de pés juntos não confiar nos sentidos). Por outro lado, por que será então que eu quero ir à tal da Taberna dona Doña ou Dona Flor? Pouco importa o nome de fachada – fica parecendo mais tentativa de confundir a Receita Municipal de Yapeyu -, eu não tenho nada a ver com isso.
Com os ouvidos colados num aparelho MP3 –viva a modernidade – caminho há mais de anos, escutando Caetano Veloso (quero ver Irene dar sua risada) e me embrenhando mais e mais no meio do nada. Durante a noite escuto o piar das corujas, assim como o bater das asas (asas?) dos morcegos que cegamente fazem seus vôos kamikases. Durante o dia, vejo as cobras se esgueirando em busca de suas presas. Sol a pino ou lua cheia. Amanheceres e crepúsculos fascinantes e tão parecidos, que às vezes fico sem saber se está amanhecendo ou anoitecendo. Sei não! Andei dando umas cachimbadas que alguns xamãs me ofereceram pelo caminho. Fico me perguntando: serão eles os amigos do Warat? Eles me dizem que pode ser que sim. Por que será que os bruxos sempre falam por metáforas? Serão eles aparentados dos oráculos? Enfim...
Estou indo porque gosto de conversas triangulares, como assim define a Andréa nossas falações (dela, do Warat e minha) e, como eu gosto de triangulações, pois me cheiram a coisas proibidas e perigosas, como também de formas perfeitas, matematicamente perfeitas, tais como o triangulo, vou indo, se vou chegar, isto é uma outra estória.