29 de set. de 2009


O amor, uma experiência... da linguagem
PARTE III
Albano Marcos Bastos Pêpe

Conforme relatos de alguns pensadores com quem dialoguei anteriormente, o amor pode ser entendido como algo inscrito no DNA da nossa espécie. Entendo que neste sentido, dispomos de estímulos sensoriais e sensíveis que garantem ações voltadas para a sobrevivência e a reprodução. Desencantados da linguagem que o reveste através de narrativas orais e escritas enquanto plural de significações romanceadas, parece-me que nos resta o consolo de sabermos que além de entidades tecnológicas, de seres racionais e de filhos “exclusivos” de Deus, somos também animais como os demais animais, com instintos básicos que nos remetem a preservar a espécie.
Ora, se amar pode ser entendido como algo “bom, prazeroso e agradável e útil”, sendo também a possibilidade de vencermos nossos temores instintivos em relação ao outro e assim viver comunitariamente, posso, ato contínuo, dizer que somos também instintivamente “amáveis” e que tal instinto nos preserva vivos, associado, é claro, a outros mecanismos biológicos tais como a sexualidade via acasalamento, o medo, a fome, a sede, a adequação dos órgãos sexuais com vistas à fornicação, a produção de adrenalina para reações mais drásticas. Por outro lado, animais dotados de linguagem como também somos, vivemos o simbólico, a representação construída ao tratarmos de nossas vivências e convivências. Sendo, portanto “impossível” para nós, a percepção de nossas raízes “naturais” sem representá-las linguisticamente, ou seja, simbolicamente.
Seguindo ainda esta linha de raciocínio, o amor em suas infinitas derivações, nada mais é que a expressão do experimentum linguae de um corpo que se pensa e que se faz sigética, construção silenciosa de sentido, sem que a priori, precise comunicar através da fala ou da escrita, o fazendo tão somente pela voz, expressão corporal de todos os animais. A espécie vence sua insociabilidade natural em nome de uma outra força natural: sua preservação enquanto espécie, permanência e continuidade.
Lembrando Aristóteles, que afirmava: “a amizade conjugal parece existir por força do instinto, uma vez que o ser humano é, por natureza, um animal que acasala”, podemos pensar que o amor conjugal, o amor entre os cônjuges e as crias, frutos do acasalamento, tem suas raízes fincadas na conduta instintiva, comum a todos os animais, voltada para a preservação da vida, nada de emoções e sentimentos espetaculares românticos. Tão somente as espécies, que garantidas (ou não) por suas capacidades de adaptação e evolução, acasalam, reproduzem e protegem instintivamente seus descendentes diretos.
A amizade tem para o Estagirita o sentido forte da virtude primeira enquanto filia, ou seja, o relacionamento entre pessoas, que vai da impessoalidade desapaixonada até o relacionamento intimo de amantes, o que viria a permitir o convívio na polis e na oika. O surgimento e desenvolvimento das outras virtudes, notadamente as morais (nomeadas por ele de secundárias), tem a ver com a consolidação das relações comunitárias e a evolução de regras morais, teológicas e jurídicas, que através dos tempos se apropriam do instintivo manifesto tão somente pela voz, ofertando ao mesmo, novos sentidos que o remetem para o plano da representação, dando existência e densidade a palavras tais como amizade, amor, paixão, gozo, desejo. O estado de natureza deixa de existir (não no tempo apontado por Hobbes) enquanto physis e inaugura-se um novo momento para a espécie, o momento do ethos, da formação cultural e da subjetividade, resultado da passagem da voz para a “infância da linguagem”: o silêncio da linguagem e, para finalmente se constituir como linguagem definitivamente, lógos e gramma.
Trágicos e patéticos seres que somos, silenciamos as vozes ancestrais de nossos corpos criando tão somente palavras para os desideratos naturais. Palavras com sentidos criados artificialmente, que, vias de regras, nada anunciam do que somos ou sentimos. Palavras que repetimos à exaustão como que para nos convencermos que sabemos lidar com nossas vidas, nossos corpos e os outros corpos. Em momento algum, notadamente na modernidade, aprendemos a falar com nosso corpo, a escutá-lo, ou seja, a nos escutar através dos sentidos corpóreos que nos permitiriam acesso à morada e ao outro, visto que fizemos da linguagem nossa única morada. “A linguagem é a morado do ser”, dizem filósofos modernos. Portanto, amar só pode ser uma palavra vazia, sem repercussão para os corpos emudecidos por tantas falas proferidas em discursos racionais que a “tudo” explicam e justificam.
A ausência de sentido das palavras que anunciam uma “palavra amorosa” deve-se, provavelmente, ao fato de que nos confundimos no uso da palavra-ação. Dizemos o que não sentimos e sentimos o que não sabemos dizer e assim, pensamos que não sabemos exprimir os sentimentos que atravessam o corpóreo na busca incansável dos outros corpos que o esperam, para...
Mas existem os mitos contemporâneos criados para que todos acreditem que nossos corpos podem ser tão modernos quanto os objetos para eles criados nos laboratórios técnico-científicos; nas clínicas de cirurgia plástica, de próteses (seio, bunda, pênis, cabelos, pseudo-vagina); nos laboratórios que produzem fármacos direcionados, do controle da reprodução, à otimização do desempenho sexual; aos estados d’alma, “tratados” pelos “psi” acadêmicos. Nesta lista de produtos, palavras viram próteses que dizem das próteses em que nossos corpos são transformados.
Cada vez mais somos distanciados da existência das vozes silentes dos nossos corpos originais, se é que ainda somos tal existir. Que lástima, morreremos assim como todos os demais corpos e, provavelmente, ausentes da apreensão dos mesmos, visto o cogito cartesiano que nos habita; visto que nunca fomos nem seremos modernos, quando o são tão somente nossas próteses.

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