23 de nov. de 2009

continuação de um diálogo recorrente - parte II


Warat: sociedades de desaparecimento -
O horror continua expandindo-se e submetendo-se a redes de poderes sociais. Foucault denunciou e nos espantou descrevendo as sociedades disciplinares. Nessas sociedades se fazia presente a biopolítica, ou seja, a disciplina por parte do Estado, dos corpos adestrados. Porém corpos que existiam e era preciso formatá-los conforme o que o Estado queria fazer deles. Depois veio a sociedade de consumo massivo, depois a sociedade do espetáculo. E agora estamos, desde alguns anos instalados em sociedades com corpos seqüestrados, com corpos que desapareceram... E ninguém justifica tais desaparecimentos. Corpos tornados invisíveis. Estados que já não se interessam em controlar as pessoas. Querem muito mais que o controle do outro. Querem que o outro desapareça. O corpo do outro já não importa nada. Se for esta a situação, não existe educação, não existe política, não existem instituições, só a dor de não ser. Se vivemos em sociedades de desaparecidos, já não mais podemos falar da alteridade, de direitos humanos, de cidadania. Todas as palavras têm que se transformar em adjetivos de um corpo. Porém os corpos não existem mais e os adjetivos tampouco. Se os cidadãos desapareceram, se não existe a cidadania, qual é o direito aplicável a um desaparecido? Os desaparecidos não podem praticar a cidadania e isto é bom para o Estado. Se meu objetivo é exercer o poder como uma maquina de fabricação de desaparecidos, não tenho porque ocupar-me deles, nem de garantir-lhes a democracia, nem a justiça, nem usar os estabelecimentos onde se fabricam os desaparecidos como lugares de reabilitação. Os desaparecidos não são reabilitáveis. O horror expandido como rizoma marca a inutilidade de todas as fantasias jurídicas. Os desaparecidos se convertem em fantasmas e os fantasmas não precisam de fantasias.
Albano:
O Estado moderno estabeleceu delimitações territoriais à diferença das ocupações das comunidades humanas em épocas anteriores à modernidade. Tais ocupações eram atravessadas por movimentos de territorializações e desterritorializações contínuas que desafiavam a rigidez das fronteiras modernas. A história nos relata a epopéia de povos e de desbravadores que atravessavam os continentes na busca do novo, do desconhecido; e desse nomadismo surgiam os relatos, as narrativas para aqueles que viviam sedentariamente. Tais relatos épicos inauguravam um tipo de discurso pedagógico que produzia um imaginário rico e criativo da saga da humanidade em sua peregrinação planetária. Assim educavam-se as comunidades, conhecendo novas culturas, novos costumes e hábitos. A educação servia para fortalecer a alma, para oferecer sentido às existências. As epopéias misturavam-se com as mitologias e muitos povos construíram imaginários estruturados com as mesmas raízes conforme nos chegam as pesquisas. Parece-me que uma expansão rizomática acontecia nas formações culturais, quando povos construíam suas identidades próprias muito em função das condições ambientais (clima, topografia, etc.), conservando no entanto os vínculos ancestrais das origens da espécie homo sapiens sapiens.
Os costumes (ethos) das comunidades implicavam na internalização dos mesmos através dos hábitos (ethos hexis) forjados em cada um dos habitantes. Todo este movimento dialético construía uma pedagogia (paedagogia), uma formação discursiva que ensinava a VIDA, a construção da morada (oikós) comunitária (polis) e a compreensão da harmonia do Cosmo (kósmos) e de suas leis imutáveis, pois eternas, para que as mesmas fossem aplicadas nos limites do mundo finito (sublunar) que habitamos. Assim, eram educados os corpos, desvelando-se gradativamente nesta tensão que marca uma espécie que se pensa e que se pergunta, que procura respostas para novas perguntas ad infinitum, pois o eterno enfrentamento do ser finito ante a infinitude do Universo.
Talvez daí a idéia do “eterno retorno” nietzschiano, um retorno aos elementais que compõem o Cosmo e naturalmente, nós mesmos. Tais elementais transmutam-se permanentemente, transformam-se mimeticamente no Caos (cháos) primordial que precede e propicia a geração dos corpos gasosos celestes. Chamamos isto de devir, devenir ou, um eterno retorno que nunca será uma repetição, pois construção permanente da VIDA que a todos gerou, que nos deu origem. Esta é no meu entendimento a base da pedagogia dos antigos, ensinando o movimento e sua complexidade, ensinando a compreensão da tensão natural entre o finito e o infinito que se dão simultaneamente. Motor primeiro dos existenciais humanos, onde não há corpos desaparecidos, mas sim, corpos mutantes num provisório e eterno estado transformacional.
A inscrição da espécie humana sempre dependeu e depende da compreensão da “des-ordem” cósmica traduzida em formações culturais que anunciam e ensinam “leis provisórias” que regem a existência do homo sapiens sapiens em seu constante nomadismo, tanto migratório como no mesmo lugar deslocando-se dos determinismos que tentam paralisar as intensidades vitais que nos regem. O Estado moderno, o capitalismo, assim como os institutos por eles desenvolvidos na modernidade (escolas, presídios, hospitais) produziram sistemas de controle e domínio que pretendem disciplinar a vida, manifestos em seus projetos educacionais, jurídicos, políticos, de produção de bens e de consumo, verdadeiras máquinas produtoras de subjetividades em série, linhas de produção de sentido ao não-sentido do Caos primordial, que não pode ser submetido a regramentos definitivos, senão a princípios e leis provisórios que se manifestariam através de uma pedagogia do devir, da VIDA.

20 de nov. de 2009

Educação: um tema recorrente; mais um diálogo entre...


Educação: um tema recorrente; mais um diálogo entre...


Cara de paisaje, cuerpos desaparecidos. Todos disciplinados”. Com este título, Warat escreveu o texto abaixo (com tradução minha), que recepcionei como um reinício de nossos diálogos momentaneamente interrompidos. Está publicado na página de seu blog – Casa Warat UNISUP - do dia 19 de novembro de 2009. Pretendo que o mesmo re-inaugure uma conversação alegre e descontraída, visto que o tema é um verdadeiro “ninho de vespas” de onde “ferroadas” podem vir de todos os lados. Digo isto porque nós que habita(va)mos o mundo acadêmico, sabemos que sob a égide da pedagogia abrigam-se os mais diversos e contraditórios discursos, típicos da Torre de Babel que é o sistema educacional instituído e oficial.
Portanto, este é o primeiro movimento “alegro ma non tropo”, apresentado como um diálogo entre dois narradores.

- Warat:
Albano, quero te contar algumas coisas que por suposto já sabes.Estou em um festival de cinema e Direito, onde travou-se uma rica discussão sobre as coisas que temos discutido diariamente: o fim do modelo educativo racional e a necessidade de discutir que tipo de educação queremos para amanhã. Outro dia, quando eu e membros da Casa Warat, fomos ver se poderíamos sonhar juntos com as Mães da Praça de Maio. Gregorio o coordenador geral da Mães, um velho amigo das sempre renovadas lutas me disse algo que provocou uma forte comoção em minha sensibilidade racional (equivalente a que Marta Gama provocou quando me disse que a faculdade de direito lhe havia roubado o corpo). Gregorio me disse que não só os militares provocaram o desaparecimento dos corpos. (para ele) A educação, inclusive na democracia provoca o desaparecimento de todos os corpos educados. O conhecimento, a educação reinante são semiocídios, que completam os momentos de extermínio concreto dos regimes totalitários, tal como os do processo Videliano and company. Somos todos, devires de subjetividades em corpos desaparecidos.
Tudo começou quando começamos a esquecer-nos que somos animais racionais e nos reivindicamos só como racionais. Este foi o primeiro ato de desaparecimento do corpo, daí começamos a ser desaparecidos até chegar ao ponto de vivermos em sociedade de desaparecidos. E a coisa continua com a disciplina, com este maldito modelo de educação, a partir de fragmentos disciplinares apoiados numa erudição, que, como toda erudição, é uma forma da ignorância, a ignorância erudita, esta que não sabe fazer nada com a informação, aterrorizada com tanto brilho. Por mais que ilustremos a informação, ela não se torna inteligente. A inteligência não brilha, apenas nos transforma, silentemente. A transformação de nosso devir subjetivo, seja individual ou coletivo, tem de ser silente. O escândalo revolucionário não é criativo e não modifica nada. O escândalo contém um forte componente autoritário. Temos que dizer basta ao saber por disciplinas. Barthes tinha razão. Temos que substituir as disciplinas por seminários. Estes últimos têm que ser dialógicos, carnavalizados, dionisíacos, com a ordem mais desordenada e aleatória possível. Por isso Barthes organizava seus seminários na Escola de França alfabeticamente.
- Albano:
Vou colocar como iluminura deste diálogo, que convêm salientar não está amparado no modelo do diálogo de surdos típico dos acadêmicos, a figura do Chapeleiro Maluco, visto que as iluminuras podem ilustrar melhor os caminhos que pretendo percorrer neste breve relato. O Chapeleiro é um personagem onírico que acontece nos sonhos de Alice, sonhada por sua vez por Lewis Carol. A partir destes lugares-personagens posso pensar a des-ordem, o Caos, a ausência de um sistema de ordenamentos que estabelecem “sentido” para os habitantes do mundo sublunar, marcado pelo tempo histórico. Mas, alguns destes habitantes percebem fissuras nestas densidades espaço-temporais, nestas densidades institucionais produzidas para ancorar os animais pensantes que somos. Tais fissuras, tais brechas negam o totalitarismo das práticas discursivas absolutas; e assim, produzem outras densidades, sutis e plenas de novos sentidos, que por sua vez libertam as subjetividades aprisionadas nos “corpos desaparecidos” a quem te referes querido amigo.
A modernidade produziu estrategicamente instituições, instituídas de tal forma como se existissem desde sempre. “Inventou” garantias para os humanos e suas comunidades, fundadas nos princípios da ordem e do progresso; do desenvolvimento tecnológico e do consumo de bens renováveis. Assim disciplinou os corpos e as vontades, articulados tal marionetes para que respondessem tão somente aos estímulos condicionadores. Nossos corpos estão ausentes de nós mesmos porque de nós foram alienados pelos filtros de sistemas educacionais produzidos para a geração do esquecimento, esquecimento de nossa ancestralidade cósmica, filha do Caos, ou seja, da constante densidade do instituinte que nunca se faz instituído, pois devir permanente.
O instituído é o Leviatã que a todos pretende submeter através dos signos postos como significante únicos produtores das máquinas racionais educativas. A nós cabe o permanente deslocamento, o estado do nomadismo, errantes de muitos lugares, errantes em um mesmo lugar, onde o instituinte não nos alcance, ali onde o Chapeleiro Maluco se movimenta, no Caos.
Des-velar, retirar os véus que encobrem os lugares eruditos das falas dos mortos, é nosso modo de ser, desiderato dos pedagogos comprometidos com a emancipação dos seres oníricos e amorosos que somos, pois desejantes em nossa infinita finitude.