19 de out. de 2009

CARNAVAIS PASSADOS


MEMÓRIAS
Sobre os bastidores do texto

Esta narrativa foi escrita (1992) ao término da criação de um texto elaborado por mim e por Luis Alberto Warat atendendo ao um convite para participarmos de uma coletânea. No entanto, a mesma, sob o título de “Filosofia do Direito: uma introdução crítica”, só foi publicada em 1996. Constitui-se em um pequeno relato de uma experiência única na produção de algo escrito a quatro mãos entre amigos.
Um texto despretensioso produzido ludicamente em torno de conversas agradáveis e algumas indicações bibliográficas que vinham às nossas memórias intempestivamente. Estávamos em São Paulo, numa época em que fazia o doutorado em Filosofia na USP, e o Warat me visitava durante o carnaval daquele ano – ele residia em Florianópolis e lecionava na UFSC. Como é de hábito, sua compulsão em escrever resultou no agradável desiderato de produzirmos algo para a Editora que nos havia sugerido algum tempo atrás: a entrega de um texto sobre filosofia e direito.

A narrativa -
A sala de estudos volta à sua quietude cotidiana. Nas paredes, as estantes permanecem como fieis pilares de sustentação dos livros e da sabedoria: o carpete, agora limpo das cinzas de cigarros e de pedaços picotados de papel, nem mais lembra um campo de batalha – quem sabe de um sambódromo – onde os livros e os papéis antes empilhados desordenadamente sobre a mesa de trabalho desapareceram, uns de volta aos seus lugares e outros repousam no cesto de lixo. A qualidade do ar (segundo parâmetros oficiais da CETESB) da sala volta às suas condições normais, ou seja, fumaça de cigarros acesos em períodos regulares. Os copos sujos de restos de café, de cerveja, de vinho, assim como a tacinha do Underberg, já foram recolhidos para a copa; os ruídos das vozes dos interlocutores já não é mais audível. Assim, certa mesmice se reinstala.
Iniciamos nosso trabalho na sexta feira da semana pré-carnavalesca e o encerramos na quarta-feira de cinzas. Nosso objetivo manifesto: escrever um livro sobre filosofia do direito; nosso objetivo oculto: o de sempre, fazermos um balanço de nossas vidas, para com isto reafirmarmos nossa condição melancólica diante do mundo por nós vivido. Dificil, senão impossível desimpregnar o tecido existencial tão fortemente costurado em nossas individualidades e que traz consigo as tonalidades, as tessituras e estilos típicos dos adeptos do bloco da melancolia (para não esquecermos a ressaca carnavalesca).
Dia a dia nos enfrentamos como bons amigos que somos, na arena dos saberes instituídos e consagrados. Entre consultas bibliográficas e consultas autobiográficas despejávamos no micro uma parafernália de informações. E, tal duas rendeiras, tecíamos o tecido das significações. As idéias que cada um trazia em suas mochilas existenciais, eram atiradas para cima e as que repousassem mansamente na telinha do Solution 16 logo transformavam-se em texto. Quantos mestres-mortos foram solicitados a depor naquele tribunal de saborosos saberes (desculpem a tautologia) desprovido de veredictos. Quantos fantasmas nossos se intrometeram para tão somente cumprirem a função dos fantasmas, ou seja, a de não no deixar dormir embalados pelas silentes vozes dos mestres-mortos da sabedoria.
Ao nos propormos a escrever tal livro, assumimos a idéia como algo distante, como algo a ter densidade “depois”. O que nos estimulava, creio, era o projeto “possivel”: enfim, “algum dia” sentaríamos em qualquer lugar e pela primeira vez, a quatro mãos, poríamos em prática algo que já estava inscrito no tempo, isto era suficiente. Quanto ao tema, acredito que nem pensávamos no mesmo. Poderia ser qualquer um, o que nos interessava era que o projeto estava lançado, passava a habitar nosso imaginário. E como costumamos cultivar fantasias isto nos bastava. Jogar para o papel textos encomendados é o nosso desiderato. Enfim, a atividade acadêmica carece de memória, necessita de matéria prima para a existência de seus acervos. Warat, mais que eu, um escritor compulsivo e portanto profissional; seus textos costumam acontecer quase que cotidianamente. Neste risca-rabisca acontecem livros, artigos, conferências e muitos rabiscos atirados nas cestas de papeis. Da “Ciência Jurídica e seus dois maridos” ao “Amor tomado pelo amor”., muita energia libidinal foi gasta, muitos maços de cigarros foram transformados em cinzas e, muitas tirinhas de papel foram atiradas ao chão – para o desespero dos seus hospedeiros eventuais. Eu, o disciplinado aluno, que produz textos para cumprir rituais acadêmicos e, às vezes escrivinhador compulsivo de crônicas do cotidiano, convém salientar, escritas normalmente como se fossem correspondências para amigos, que raramente as recebem! Com estas específicas biografias de escribas, aceitamos o projeto comum, o “projeto”, apenas.
Mas, eis que acontece o período dedicado ao reinado de Momo, e como o carnaval não passa desapercebidamente, nem para os foliões aposentados, como é o meu caso, nem para aquele que dele se aposentaram sem ao menos tê-lo vivido. Como é o caso do porteño Warat, estava dada a ocasião para a concretização do “projeto”; o evanescente ia ter o seu momento de densidade. Sob a benção dos foliões da ativa – que nem sabem de nossas existências – aceitamos o início da nossa folia: a produção de um texto encomendado, datado e com todos os salameleques que requer sua feitura. Enfim, fantasiado de livro. E, tal como qualquer prévia carnavalesca, foi anunciado antes do carnaval oficial: sexta-feira, um dia antes da posse de Momo. Também, como bom texto de carnaval, chegou ao seu termo numa quarta-feira de cinzas, com direito a ressaca, Sonrisal, Alka-Seltzer e gelo na testa.
Esta é uma parte da estória de um samba enredo a ser cantado em algumas passarelas da academia nos próximos carnavais.

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